Por semanas, Anya tornou-se um assunto proibido entre Mikhail e Pavel. Não a citavam nem mesmo na mais cotidiana das conversas, bem como não se falava da festa ou de qualquer coisa que remetesse a aos estranhos desencontros daquela noite. Tornou-se muito simples ignorar certas coisas: mantê-las escondidas sob os ossos e trancadas pelos dentes.
Os meses passaram e o evento comemorativo caiu em um esquecimento forçado e nada foi resolvido ou tratado por ambos rapazes, de forma que Pavel engasgava-se no veneno do ciúme e Mikhail, no intuito de não causar qualquer cólera em seu duo, buscou o afastamento da filha de Dasha e apenas dedicava atenção a moça quando fazia-se necessário.
Mas apesar de todos os esforços, o suposto bastardo de Iuri não conseguia ocultar seus olhares para Anya. Pasha notava! Fosse quando trabalhavam na mesma tarefa ou nos jantares que dividiam com as vizinhas. Vez ou outra as orbes de nuvem buscavam pela figura jovem de face arredondada e semblante ameaçador. Fitavam-se por um breve instante e às vezes até trocavam aqueles sorrisinhos irritantes.
Durante este período de tempo singular, que compreendeu um verão e um inverno, Pasha começou a sofrer de uma fobia no mínimo curiosa:
Mais de uma vez, durante a madrugada, seus olhos abriam-se inesperadamente. O teto da isbá e suas toras de madeira enchiam a visão do rapaz que ao tentar se mover, via-se incapacitado de sair do lugar, como se suas pernas e seus braços recusassem obedecê-lo. Então vinha o desespero, o ar tornava-se pesado como chumbo, a mente se enchia de situações amedrontadoras e o mundo inteiro configurava-se em um lugar horrendo.
Pavel não podia fazer nada, não dominava a própria alma naqueles instantes e então, chorava silenciosamente, até que fosse liberto da estranha prisão em que se colocava.
Nem Mikhail e nem Tânia acordaram-se durante tais crises e a situação desesperadora, somada a insônia que seguia o terror, tornou-se um segredo pertencente apenas a Pasha, algo que não mencionou a ninguém e que o delimitou a uma solidão introvertida, inflada de confabulações culpaminosas sobre quem se tornava e como se sentia diferente dos outros garotos de sua idade.
E a cada dia que passava, conforme seus pensamentos e desejos tendiam ao que se dizia "errado", os medos e fobias pioravam e trancafiavam Pasha em si mesmo, sem que houvesse possibilidade de escape.
O sentimento de deslocamento confundia Pavel como nunca antes: enquanto os rapazes de dezessete anos que tinha notícia começavam a se interessar naturalmente pelas mulheres, ele não conseguia nutrir nenhum tipo de sentimentos ou desejos carnais pelas moças... e ele tentou.
Mais de uma vez se pôs a observar as garotas da vila da mesma forma que fazia com os rapazes, buscava nelas qualquer coisa que o atraísse, qualquer sinal ou detalhe, mas isso não acontecia.
Reconhecia a beleza, bem como admirava a personalidade de algumas, mas não atingia uma conexão semelhante a que Mikhail tinha com Anya. Passou a acreditar, então, que era a única pessoa no mundo a se sentir assim e que por tanto, a natureza havia cometido um erro com ele, algo não visível, mas existente em seu ser; uma espécie de marca de Caim gravada em suas entranhas.
A insegurança o tomou por completo e o silêncio introvertido arrancou seu hábito de falar demais, isso tornou rara a comunicação verbal com Mikha, que não compreendia a situação, embora buscasse respostas.
Pasha transpassou o inverno inteiro assim, silencioso, com olheiras cravadas no rosto, palpitações estranhas e uma dor de cabeça lacerante: repreendido e encurralado nas coisas incompreensíveis que se esfarelavam dentro dele. A solidão, mesmo entre os outros, o tragou e o jogou em uma cela invisível e o silêncio o mastigava lentamente.
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Um Conto do Leste
Fiksi SejarahRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...