Estavam os dois deitados, um ao lado do outro, de mãos dadas e fitando o teto do quarto como se observassem as estrelas ou como se diante dos pares de olhos passasse um filme de toda a história que viveram juntos. Não sabiam que horas eram, mas a escuridão se fazia soberana lá fora, denunciando que não passou muito tempo desde a primeira troca de beijos e que estavam seguros da manhã que obrigaria uma separação.
Os dedos criavam um jogo próprio, enlaçavam-se das mais diversas formas, criavam toques de diferentes intensidades, mas não se separavam, como um contato remanescente dos beijos trocados até poucos minutos antes.
Agora, Pasha e Mikha vagavam em uma dimensão imensurável, enquanto conversavam em um tom baixo sobre outros tempos, deixando que a sinceridade quanto aos sentimentos juvenis, pela primeira vez, fluísse com a leveza nostálgica, sem impor falsas desculpas em nome de aparências.
- ... e aquela vez que fugimos pela estrada... fomos até a estação e voltamos, simplesmente só por fugir. Você lembra, Mikha? - Pasha disse enquanto continha a risada, ainda derivada de uma história anterior.
- Tânia ficava furiosa... - a resposta veio em um tom de harmonia, mesmo que o senhor não se lembrasse com clareza do evento citado - Tenho saudades de nossas fugas.
Era tão fácil escapar... conheciam todo o mundo antigo, cada canto que derivava de uma única estrada. Sabiam em quais lugares do rio poderiam nadar, em quais árvores poderiam subir. A vastidão de Moscou e a vida atual, por outro lado, os colocava naquela posição adulta e cheia de responsabilidades, onde o simples ato de se atrasar para o trabalho poderia causar uma demissão ou levantar a suspeita dos oficiais.
Viviam em melhores condições de moradia, mas isso possuía um preço e era difícil decidir entre a segurança daquela casa ou a falsa liberdade que tinham anteriormente.
- Acho que entendo porque você não quis me encontrar logo que chegou a Moscou... o seu medo... os dilemas. - Mikha continuou.
- Não, você não entende... eu achei que você tinha me esquecido - corrigiu Pasha - achei que você tinha mudado tanto a ponto de já não conseguir ser o homem que eu conheci.
- Posso até ter mudado, mas seria mais fácil eu esquecer de respirar... - Mikha virou o rosto, para encarar a feição de seu par.
Observou com atenção os olhos perdidos em um espaço inexistente e sorriu largo, pois a beleza que encontrava no semblante tempestuoso lhe arrancou um suspiro apaixonado. Lembrava, ao vislumbrar Pasha, que nem sempre a vida se mostrava penosa. Em todos os momentos (no passado e no presente), parecia existir algumas brechas de esperança, algo dizendo que, no fim, tudo daria certo para os dois.
- Se lembra daquela vez que você caiu da árvore e passou o caminho todo colocando a culpa em mim? Eu quase chorei, enquanto voltávamos para casa. Só não chorei por achar descabido chorar...
- Eu tinha treze anos, para mim parecia que a culpa era sua. - respondeu Pavel, seguido por um dar de ombros.
- As vezes, quando você estava longe, eu chorava de saudades... antes de dormir. Abafava as lágrimas contra o travesseiro, mas elas apareciam - ele mordeu o lábio inferior - Sempre doía pensar que eu nunca mais veria você. Era estranho...
- O que há de estranho nisso, Mikha? Eu também sentia saudade... não é propriamente incomum.
- É estranho eu te amar tanto - o jovem senhor confessou, com os olhos de nuvem ainda cravados nas feições alheias - Eu queria ter sua memória, só para lembrar mais de tudo, só para... saber os detalhes que vão se apagando.
Pasha virou-se de lado e aproximou-se, dando fim a distância que já existia há tempo demais. Escorou a cabeça no peito de seu par, mas não desfez o toque nas mãos (elas permaneciam unidas, agora, sobre a barriga de Mikhail). O mais velho não se importaria em dormir assim todas as noites, não se importaria em sentir a presença do outro em sua cama; no alcance permanente de seus beijos.
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Um Conto do Leste
Historical FictionRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...