Capítulo II: O Hospede (Parte 3)

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Pasha jamais soube que naquela mesma noite passou por Mikhail na rua, sem reconhecê-lo e sem ser reconhecido.

Se Mikha erguesse o rosto humilhado para fitar o soldado que passou de relance pela rua ou se Pavel não mergulhasse sua mente na insegurança interna o mundo se reconfiguraria automaticamente, como faz todos os dias, diante a mais habitual das ações...

Tanto Pasha quanto Mikhail, diante a doutrina e a vivência durante aqueles anos de juventude, acreditavam que nem sempre as partituras se seguem de acordo com o anseio do violinista, mas ainda assim, em uma orquestra, é imprescindível que se mantenha o conjunto, do contrário, o violino descompassado seria o terror dos ouvidos da plateia.

A realidade, no entanto, não é um conserto. No mundo real, seguir as vontades e os desejos, por vezes, enriquece ainda mais a sinfonia, de forma que, se encontra uma nova beleza, um novo conjunto de situações gratificantes, como o amor... a música mais tocada e mais variada de todas, a canção dos poetas e dos loucos.

E no instante em que Pavel Iurievitch, ao ver Katherina Gregorievna na porta de entrada do prédio, atravessou a rua para encontrá-la, a confusão em sua cabeça girava muito mais ao redor da ideia de loucura do que das canções poéticas e dos amores impossíveis.

Subiu as escadas em silêncio, encolhido em seu ser, sem a capacidade de olhar para as paredes que erguiam-se, sem conseguir contar os degraus do prédio, sem mergulhar como outrora fizera, na atmosfera moscovita.

Balançava-se no universo trêmulo do passado e deixava-se levar por caminhos secos, feitos da opressão: não a estatal, ao qual os sociólogos ocidentais tanto se referem, quando o assunto são os anos de ferro sob o comando de Stalin, uma opressão ainda mais enraizada no seio da sociedade, algo que persiste em tempos modernos, que até hoje cala as pessoas e as tranca dentro de si, com segredos e mentiras que contam para manterem-se seguros no mundo das aparências.

Pasha nunca teria pedido a Mikhail que partisse para longe e Mikhail jamais teria seguido os rumos que seguiu se a sinfonia fosse regida por outra partitura.

- Não se preocupe, camarada, será uma noite tranquila, o senhor se recuperará em breve da viagem e poderá se engajar na vida de Moscou sem grandes problemas - disse Katherina, pouco antes de abrir a porta e dar passagem ao hóspede, para que ele entrasse no apartamento de Nasekomoyev e, finalmente, conhecesse pessoalmente o anfitrião.

E, ao contrário da maioria, Pasha não se espantou com a figura do homem diante dele, sequer recuou, talvez, por já esperar as terríveis marcas de guerra estampadas no rosto de Gregor Dmitrievitch.

Apresentaram-se com as alcunhas, apertaram as mãos e sorriram amistosamente um para o outro, como se já se conhecessem de longa data. Sobre a ponte das histórias do passado, das cartas e de uma curiosidade latente, ambos os homens identificaram-se, unindo o imaginário com a realidade: um lugar onde o mito bélico de Gregor Dmitrievitch resumia-se a um homem quebrado e a idealização divina criada por Mikhail em relação a Pavel transfigurava-se em um rapaz franzino e sem grandes diferenciais que o separassem dos camponeses da época.

Em um primeiro momento, não comentaram sobre o incidente ocorrido a poucos minutos, ao invés disso, Nasekomoyev deu uma muda de roupas ao convidado e disse que o aguardariam, para que os quatro fossem até a cozinha e se alimentassem na presença dos demais moradores do núcleo.

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Após o jantar, Olga foi para seu apartamento, ao passo que os outros três rumaram para a casa de Nasekomoyev. Pavel, durante o tempo que passaria com a família de Gregor, se instalaria na sala, dormiria em um sofá que certamente, era mais confortável que os aposentos da locomotiva o que, para ele, estava de bom tamanho.

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