Algum lugar no sul da Rússia, 1994.
— É aquele senhor ali. — Indicou a enfermeira, falando de forma mais lenta, para que a moça estrangeira pudesse entender.
— Obrigado. — Respondeu ela com seu forte sotaque.
Beatrice Sinclair era uma mulher alta, negra, de cabelos volumosos e enrolados. Tinha seus cinquenta e poucos anos e os fios brancos apenas serviam para dar a sua aparência imponente um detalhe sutil. Os óculos de armação fina diante aos seus olhos permitiam ver claramente o senhor sentado em uma poltrona. Ele olhava distraidamente para a fachada do prédio do outro lado da rua, através da janela.
Fora Katherina Gregorievna, a famosa escritora russa em pessoa, que deu o endereço do lar de idosos a Beatrice, colocando um fim numa busca que se estendia desde a abertura e o fim da União Soviética. Foi cansativo, por várias vezes ela julgou impossível encontrar alguém com nome tão comum em um país gigantesco como aquele.
De maneira despretensiosa, a mulher puxou uma cadeira e a posicionou ao lado do senhor. Nesse momento, ele perdeu os ares distraídos e a encarou com estranhamento, uma vez que não a conhecia e quando recebia visitas, eram as rápidas passadas de seus netos desatenciosos.
— Mikhail? — Bea perguntou em forma de confirmação. — O senhor é Mikhail, não é?
O senhor deu uma risada bem humorada e voltou-se a ela. Talvez fosse uma médica nova... e estrangeira. O que uma estrangeira faria na Rússia? Curiosidade? Seria ela uma daquelas pesquisadoras que tentavam descobrir o que o comunismo foi ali?
— Estou velho, mas muito bem de saúde. Obrigado. Fiz exames na semana passada... posso garantir que sou o morador mais saudável daqui.
Ela retribuiu o bom humor.
— Não sou médica, senhor. Estou aqui por outro motivo.
— Ah, seu russo é complicado... fala como alguém de anos atrás. Será que poderia falar mais devagar? — Ele disse da forma mais educada possível, ainda mantendo o tom bem humorado. — A senhora é francesa, não é? O r lhe entrega.
— Argerina. Eu e minha mãe de sangue fomos para a França quando eu era pequena... acabou que ela faleceu por lá e fiquei sozinha. — Beatrice contou, na tentativa de começar a conversa que a levou até ali.
— Sinto muito, mesmo... sei como é perder uma mãe...
— Sim, o senhor sabe. Perdeu duas, não é? — Bea foi incisiva.
Em resposta, os olhos de nuvem cercados de rugas ganharam um brilho de curiosidade e medo. Como ela sabia? Seria uma espécie de agente francesa da KGB? Não, isso nem fazia sentido.
— Não lamente, tudo bem. Eu fui adotada pouco tempo depois por alguém chamado Paul Sinclair. Meu pai... o homem que me deu a melhor educação possível, me criou com o mesmo a amor que Tânia deu a você e passou anos me contando uma história. Uma história que carinhosamente eu chamo de "um conto do leste"... passei a vida ouvindo falar tanto do senhor... eu sei de tudo e me emociono só de lembrar. Sabe, é um prazer imenso conhecê-lo, Mikhail Andreyevitch Karev... ouvi milhares de vezes suas histórias.
— Pasha? — Mikha balbuciou e abriu um sorriso tristonho. — Você é filha de Pasha?
— Sim... ele conseguiu fugir daqui. Foi para França com a ajuda de alguns amigos e se tornou dono de um antiquário... consegue acreditar?
— Ah, é bem o tipo de coisa que ele faria! Se cercar de velharias... coisas do passado.
— Ele sempre quis escrever, mas tinha medo... ele sabia o que acontecia com quem fugia. Lutou muito para conseguir se camuflar, não entregar a origem.
Mikha ficou em silêncio por um tempo. Seu coração batia rápido enquanto ele montava as peças do quebra-cabeças que Beatrice contava. Então, comparou com sua vida e pensou em Anya, em como ela faleceu há dois anos, de velhice, ao seu lado.
Lembrou de seus filhos... Piotr, que mudou-se junto a esposa para a antiga Alemanha comunista e Tânia que agora era bem cuidada, apesar de não reconhecer ninguém, nem mesmo o pai. O senhor já chegara à conclusão de que o destino o tornara um homem sozinho com suas mágoas, uma vez que todos tinham partido de uma forma ou de outra. Se Beatrice estava ali, desacompanhada, era sinal de que Pavel, tal como os outros, também já não estava nesse mundo e, por isso, decidiu, com as lágrimas correndo pelo rosto, perguntar:
— Ele morreu feliz, então? Com a vida feita, com uma família, cercado de velharias e em Paris.
Beatrice riu mais uma vez e negou com a cabeça. Mikha não compreendeu aquele gesto em um primeiro momento e, inclusive, chegou a se indignar com o que lhe pareceu descaso por parte da moça.
— Sabe aquela história? De quando ele chegou em Moscou e ficou com medo de encontrar o senhor?
Mikhail, sem humor, concordou com a cabeça. Sequer ouviu completamente o que Beatrice disse, além do mais, era difícil de entender aquele russo enrolado proferido pela mulher.
— Ele teve medo de encontrá-lo... agora da mesma forma que teve no passado. Meu pai não está morto, senhor. Ele está sentado na recepção, chorando e com medo de vir até aqui e perceber que o senhor esqueceu dele.
O sorriso apareceu no rosto do homem. As lágrimas já não eram mais contidas e a alegria percorria seu corpo como não acontecia há anos. Pasha estava vivo... e estava ali, há poucos metros de distância... acovardado, novamente, com aquela ideia estúpida de que Mikha poderia esquecê-lo.
— Primeiro eu teria de esquecer que existo... — O senhor disse e a frase o fez pensar na filha... afastou o pensamento. Não queria derramar seus problemas naquela preciosa brecha da estrada tumultuada do mundo.
Karev se levantou, decidido e ágil como a anos não era.
— Não há jeito... o tempo pode passar, mas ele continua o mesmo. Pasha parece não entender que já não temos mais tempo a perder. Se ele não vem até mim..
Mikha já preparava-se para ir em direção a recepção onde estava Pasha, quando notou aquele senhor magro, entrando de forma desconcertada na sala e apoiando-se em uma bengala de madeira, ainda que fosse ereto e elegante, como um nobre do passado. Os anos podiam passar, mas Mikhail ainda o reconheceria, ainda veria aqueles olhos de tempestade e sentiria todo o amor do mundo brotar em seu interior.
Os olhares se encontraram depois de tanto tempo. Tempestade e céu limpo, contendo toda a sabedoria dos anos vividos, contendo toda a História que observaram e viveram em suas peles. Sorriram ao mesmo tempo, tal qual da última vez que se viram. Beatrice encarou a cena com um sentimento satisfeito por ter conseguido realizar aquele encontro. Os dois senhores andando um em direção ao outro até enfim se encontrarem em um abraço guardado desde os tempos de juventude.
De repente, tudo que ela ouviu do pai ganhou vida para ela... estava diante do passado e do presente e os via se materializando em um abraço entre os dois homens. Podia sentir em si a felicidade nos dois senhores quase como se fosse uma aura que se espalhava por todo espaço.
Pavel Iurievitch (pois esse era, ali, seu nome), sentiu o perfume de Mikhail Karev e o inconfundível acolhimento que as almas encontravam quando estavam juntas. Cumpriu sua promessa, estava ali e, dessa vez, ainda que no começo a coragem lhe tivesse faltado, conseguiu ir até o outro.
— Você não está mais sozinho, Mikha... nunca mais vamos nos separar.
— Nunca mais, Pashenka. Estamos juntos em casa.

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Um Conto do Leste
Fiksi SejarahRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...