Capítulo V: A Roda Gira

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23 de Fevereiro de 1917, São Petersburgo.

"Pão e Paz" lia-se nas faixas e cartazes. Gregor Dmitrievitch, da sacada do quarto alugado, observava a multidão que tomava as ruas. O homem, com parte do rosto deformado por uma explosão no campo de batalha, foi dispensado do exército devido seu problema de audição, no entanto, os gritos altos e o canto das ruas lhe soavam bem claros e o preenchiam de uma sensação patriótica verdadeira, que se distinguia dos discursos dos generais no fronte.

Comida e o fim da guerra: um pedido justo, básico para se viver. Ao contrário da suposta luta honrosa nas fronteiras, ali, ninguém exigia sua vida, mas sim lutava-se por ela... "um pedido justo", ele repetiu em pensamento, ao passo que abandonava a passividade do parapeito e descia as escadas. Logo, no meio da multidão, erguia o punho e cantava junto aos espíritos revoltos.

A revolução começou.

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Novembro de 1917

"Eles estão vindo", pensou Natasha Karevna ao passo que sentava-se graciosamente no tapete do escritório e encarava a chama trêmula da lareira a sua frente. Pousou sobre o colo uma caixa de madeira, toda entalhada com pequenos ramos e ao abri-la, hesitou em começar a jogar as fotografias ao fogo, afinal, se tratavam de lembranças da família em dias mais tranquilos que aqueles.

O Czar renunciou há meses, e agora, os bolcheviques subiam a seus postos no governo. Os camponeses comemoravam a queda dos senhores e a posse das terras; os novos ares, supostamente mais justos.

Para Natasha sobrou apenas a possibilidade que levou a senhora a se encolher diante ao fogo, enquanto as lágrimas lhe escorriam pela face.

As chamas consumiam os rostos preto e branco junto aos papéis.

"Nos levarão, nos matarão, somos inimigos do povo!" disse para si mesma, como forma de se motivar a continuar com seu plano.

Andrey Karev, um aristocrata, um contra-revolucionário, lutou para que manter o posto da família, negou a revolução, pois acreditava que, como em 1905, a revolta se extinguiria muito rápido diante a repressão. Mas agora era diferente, não havia mais um Czar, não haviam mais nobres, o sangue não lhes protegia, mas sim os condenava.

Em um acesso de coragem, Natasha jogou o restante do conteúdo da caixa ao fogo, de uma única vez. Se pudesse, passaria horas ali, admirando cada retrato que agora escurecia e dessipava-se em segundos, até tornarem-se uma pilha de cinzas vazias.

Seu marido, Andrey Karev, foi detido em Petersburgo. Alguns meses antes, quando os conflitos se iniciaram, viajou para se juntar aos seus amigos na cidade e procurar uma solução que acarretou na prisão de todos. Agora viriam buscar seu filho e sua esposa, chegariam logo, viriam para organizar as terras e as forças de trabalho e com isso, os levariam, pois eram inimigos do povo.

De novo aquela expressão.

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O cocheiro parou no meio da estrada. Não estavam distantes da aldeia dos camponeses, ainda assim, seria um percurso dificultoso de se percorrer em plena noite fechada de inverno.

Natasha preferia assim, pois era mais seguro. Se seguissem no trenó até a vila, o marchar dos cavalos e os arrastar das lâminas poderiam despertar a atenção de alguém e se executassem seu plano durante o dia, ele seria frustrado.

Uma das tochas, que iluminaram precariamente a estrada até ali, foi passada para as mãos da senhora, para que ela pudesse enxergar os próprios passos no breu completo. Após preparar-se, segurou com força a mão de Mikhail Andreyevitch e o ajudou a descer da condução, então, juntos, adentraram uma trilha estreita por entre as árvores congeladas.

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