Acontece que no momento em que vivemos os eventos, é impossível conhecer as consequências, bem como, tomados pelos sentimentos, somos incapazes de enxergar o mundo com precisão.
Nikítin nunca seria seu rival, mas Mikhail só entenderia isso com o tempo. Precisaria do desenrolar dos fatos. O que não tinha no segundo em que observou Klaus Konstantinovitch embarcar no bonde mais uma vez. Sempre no mesmo ponto, sempre com os mesmos ares, sempre com seu uniforme universitário, segurando seus cadernos.
O rapaz passou pelas pessoas uma a uma, rumo ao fundo da condução. Tentava se equilibrar com os livros que apoiava no braço esquerdo e, ao mesmo tempo, seus olhos vagavam pelos rostos desconhecidos em busca de Pavel.
A primavera avançava sobre cidade. Já não fazia mais tanto frio. Os dias cresciam, de forma que, naquela hora, o sol ainda marcava o céu, em suas cores alaranjadas. Nikítin, que detestava a supremacia noturna do inverno, simplesmente sentia-se bem com os raios solares que entravam pelas janelas do transporte.
Finalmente avistou a figura procurada! A espera e o atraso proposital valeram a pena.
No momento em que postou-se, como sempre, ao lado de Pasha, Klaus recobrou, como fez em todos os dias anteriores, outro motivo para gostar daqueles raios tardios de sol: Pavel combinava perfeitamente com aquela atmosfera, pois seus cabelos de cobre quase uniam-se as cores do horário.
— Boa noite, Camarada — Nikítin cumprimentou, tentando uma continuação da proximidade obtida na noite anterior em que se viram.
— Boa noite, Camarada — respondeu Pasha, desenhando, no rosto cansado, um sorriso breve.
— Pode me chamar de Nikítin...
Aquela foi a primeira vez em que Pavel ouviu a alcunha alheia e no instante em que o nome chegou a ele, seu sorriso encheu-se de uma empolgação semelhante a de alguém ao receber um bom presente: "Nikítin, como o personagem de Anton Tchekov." ele pensou.
Coincidências que ligavam as obras que lia com a realidade sempre enchiam Pasha de uma empolgação vertiginosa. Desde nomes a eventos e locais: parecia, por um momento, que o mundo real mergulhava no universo das páginas desgastadas.
Lembrou-se de seus tesouros materiais perdidos no incêndio da vila: as cartas de Mikha (que agora já não eram tão preciosas, diante a proximidade real do outro) e os livros. Repentinamente apareceu a saudade dos dias curtos de inverno, quando ele e Mikhail postavam-se um em cada canto da mesa para compartilhar as leituras.
Quase podia sentir de novo o cheiro do campo, o calor do aquecimento precário do fogão, a presença da mãe, sentada em uma cadeira, ocupada de distrações, tal como os dois meninos.
Então, como sempre acontecia quando Pavel remetia-se aos bons momentos, as imagens mais recentes de seu lar destruído voltaram. Para se proteger, rumou os pensamentos para outros cantos, voltou ao presente para se distanciar dos gritos longínquos de um vizinho caçado pelos invasores.
Nikítin ainda se encontrava ao seu lado e erguia os cantos dos lábios em um sorriso discreto. Pavel deixou que, naturalmente, sua atenção voltasse para o rapaz dos cabelos loiros:
— O senhor estuda medicina, creio eu — Pasha comentou, ao passo que desviava os olhos para o livro que Klaus carregava consigo.
— Sim, em breve me formarei médico. O senhor trabalha nas fábricas, estou certo?
— Não, eu trabalho na construção de um prédio do governo no centro da cidade.
— O senhor precisa conversar com um amigo meu... ele adora falar sobre edificações. Se formará engenheiro em breve. — comentou Klaus.
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Um Conto do Leste
Ficción históricaRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...