Capítulo VI: O Novo Filho de Iuri

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Foram difíceis os primeiros dias de Mikhail naquele ambiente quase oposto a ele. Sentia-se traído por todos: por Natasha, que desapareceu e o deixou ali, por Tânia que o enganara e até mesmo por Pasha que lhe prometera que tudo ficaria bem. "Mentirosos!" pensava ao passo que recusava-se a ajudar no trabalho e postava-se o dia inteiro diante a janela, observando a trilha, agora coberta de neve, que ligava a vila à estrada.

Lacraram a abertura quando o inverno tornou-se o único soberano restante na Rússia, Mikha, então, mudou seus hábitos e passou a reler diversas vezes as lições de francês contidas no caderno de seu irmão.

Às vezes, Dasha e Anya apareciam por ali, sentavam-se perto do fogo e conversava-se durante horas e mais horas. Nem mesmo elas foram informadas da verdadeira origem de Mikhail. Tânia manteve para todos a história de que se tratava de um bastardo de Iuri, criado em um bordel na cidade e mandado a ela após a mãe do rapaz ter morrido de tifo. A mentira repetiu-se tantas vezes que as pessoas começaram a criar semelhanças entre o recém chegado e o falecido marido de Tânia.

— Nunca gostei daquele homem — dizia Dasha Kuznetsova, direta como sempre — Mesmo depois de morto consegue trazer problemas, e você... — olhava para Mikhail e apontava-lhe o dedo — tem sorte de Tânia ser uma santa. Se me trouxessem um bastardo eu deixaria na rua...

Em momentos assim, por mais que Mikhail quisesse revelar quem era, ficava em silêncio e ouvia as broncas sem retrucar ou exibir seu verdadeiro sobrenome. Já não existia honra alguma em ser um Karev, bastava que se ouvisse o discurso dos habitantes para se chegar a tal conclusão.

Após algumas semanas, Tânia costurou uma camisa e uma calça de linho artesanal. Deu as peças de presente a Mikha. Não lhe tiraria o casaco de pelegos, claramente muito caro para um camponês, se o fizesse, ele congelaria com a falta de agasalhos, mas ao menos, os novos trajes, o deixaram com ares simples e o garoto parecia um pouco mais verossímil naquele ambiente.

— O que dirá se lhe perguntarem sobre o casaco? — repetia Tânia, com ares rígidos.

— Que foi um presente de um senhor de Petrogrado para minha mãe, ele parecia ser rico, mas não sei nada mais sobre ele — respondia o garotinho.

— Muito bem e não ouse me desmentir, ouviu bem?

— Sim senhora.

Quando os representantes do governo chegaram, a neve já começava a derreter e tornar-se escorregadia. Passaram em todas as residências, com uma seriedade acentuada nos semblantes. Eram três ao total, os demais camaradas se encarregaram da vila localizada fora da antiga propriedade dos Karev.

No pequeno aglomerado circular de casas onde Tânia, Pasha e Mikha residiam, vivia apenas os antigos locatários da família extinta, já na outra aldeia, maior e mais populosa, juntavam-se diversos outros tipos de moradores do campo, o que exigiam um maior trabalho por parte dos sovietes.

— São os dois seus filhos? — a mulher que liderava o grupo perguntou.

— Apenas Pavel, o outro é um bastardo do meu marido. O recebi em minha casa no momento em que se tornou órfão.

— Já não existem bastardos, camarada. A hereditariedade legítima é uma estrutura burguesa de opressão. Todos, agora possuem os mesmos direitos — respondeu a mulher, como se fosse uma professora que corrige um aluno.

E foi assim que nos novos documentos de Mikhail acrescentou-se o patronímico "Iurievich". 

Respiraram todos aliviados quando os representantes partiram sem discutir a mentira contada. Sequer citaram o destino dos Karev, como se tentassem ocultar o que aconteceu com os antigos senhores.

 ——————

Passados alguns dias, com a volta do sol e de temperaturas mais amenas, decidiram plantar uma horta entre a casa de Dasha e a de Tânia. Seria de uso comunitário e portanto, todos cultivariam os alimentos. Enquanto os adultos se preocupavam com o semear do trigo longe dali, ficou a encargo dos mais jovens cuidar do projeto, dentre eles, Pasha e Anya.

Não demorou muito para que Mikhail desse o braço a torcer e se juntasse a eles.

Primeiramente não sabia segurar os utensílios e atrapalhava-se todo. Anya caçoava do recém chegado devido a sua falta de jeito, já Pasha, aproximou-se de Mikha e começou a apontar para cada uma das ferramentas, explicando sua função e ajudando-o a enterrar as sementes no solo.

— Viu? Não é difícil! — dizia o garoto mais experiente com aqueles assuntos.

Mikhail admirava a paciência que o amigo lhe dedicava: os sorrisos de aprovação toda vez que conseguia fazer algo direito, as broncas que Pavel dava em Anya toda vez que ela buscava uma forma de lançar seus insultos, as correções sinceras e sutis, feitas em um tom de voz ameno.

Pavel carregava uma rebeldia única em suas feições. Talvez, pensou Mikha, tais ares viessem dos cabelos volumosos que recusavam a organizarem-se em cachos ou manterem-se completamente lisos. Quem sabe, a fúria revolta residisse na forma como o garoto afrontava as coisas sem medo ou vergonha, como pronunciava as palavras ou ainda na união dicotômica que rondava sua face. A mistura confusa de um anjo de afresco com um diabinho astuto.

A cada dia que passava, os detalhes tempestuosos de Pasha se acentuavam diante a percepção de Mikha. Tentava fazer com que seus olhares curiosos não fossem percebidos, mas uma vez ou outra as orbes escuras voltavam-se a ele e os reflexos de Mikhail não eram rápidos o suficiente para desviar a atenção.

— O que houve? — perguntava Pavel das primeiras vezes.

Mikha corava e não respondia, então Pasha simplesmente desistia de questioná-lo.

Em uma dessas ocasiões em que Mikhail parava para observar o amigo, tivera uma ideia de distração para aliviar a passagem lenta do tempo na noite insone. Tânia dormia em seu colchão e os rapazezinhos mantinham-se calados no leito maior que dividiam.

— Escute, você me ensinou a lidar com a horta, talvez eu devesse ensinar alguma coisa em troca — disse repentinamente.

— E o que você teria para me ensinar? — Pasha rebateu sem carregar a voz de presunção, mas sim de sinceridade.

Mikha levantou-se e tirou o caderno de seu irmão de baixo do travesseiro.

— Há algumas páginas sobrando. Posso ensiná-lo a ler e escrever. Não temos tinta, mas usaremos o carvão.

Criou-se um ritual noturno: os dois esperavam Tânia dormir, sentavam-se diante do fogão, ocultos pela bancada e aproveitavam a luz das chamas para executar as lições de gramática.

Após alguns meses, Pasha já era capaz de ler e escrever, o que não matou as reuniões diante ao fogo. Agora, sempre que perdiam o sono ou quando não estavam exaustos graças ao dia de trabalho, sentavam-se ali e conversam sobre qualquer coisa que suas mentes conseguiam imaginar. 

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