Capítulo VII: Horas Brancas (Parte 2)

1.6K 263 74
                                    

Existem dois tipos de experiências possíveis ao ser humano, obviamente, tais máximas se ramificam até tornarem-se salgueiros centenários, cheios de galhos e folhas. Mas em suma, tudo se coloca em uma dicotomia de coisas captadas pela razão e situações percebidas pelo sentimento.

Quando se tem quinze anos e se vê de forma tão brusca a imagem da morte maculando o paraíso vivo, é impossível não se deixar levar por uma breve paralisia nos nervos mesclada a uma curiosidade mórbida. Os sentimentos dominam o ser, confinando o pensamento racional a um canto abandonado as traças.

Mikhail, diante ao seu primeiro corpo sem vida, não se moveu, dominado pela estupefação que bloqueava seu ser. Já Pavel, associou o soldado com seu pai no leito de morte e bastou tal paralelo para lhe impulsionar a dar algumas braçadas em direção ao corpo. 

O rapaz sequer podia lembrar os detalhes do falecimento de Iuri, mas eles existiam em algum canto escuro do porão de situações ocultas na memória, e mesmo com o lapso que o tempo lhe causara, tinha a certeza de que seu pai não possuía a mesma aparência do corpo que agora ele virava para cima.

A farda denunciava o morto como um soldado do Exército Branco. O cadáver tinha os olhos abertos e vermelhos, no rosto, uma expressão de pavor ficou fossilizada e por todo o peito púrpuro e inchado, pequenos furos circulares e rubros contavam que o homem foi alvejado por diversos disparos.

Pavel Iurietich retrocedeu, seus nervos foram atingidos por uma corrente e ele encolheu-se em repulsa. Voltou-se para Mikhail, ainda imóvel como uma estátua de mármore de olhos perdidos e lábios entreabertos.

— Precisamos ir embora — exclamou Pasha, antes de tomar a mão de seu amigo entre as suas e guiá-lo até a pedra onde deixaram suas vestes.

A fumaça aumentava cada vez mais, ainda que não se pudesse ver dali o que as labaredas destruíam. Distinguia-se apenas a direção do incêndio devido ao vento,  descartando a possibilidade de que o confronto acontecesse  na vila onde moravam.   

Os rapazes vestiram-se rapidamente, sequer amarraram a camisa ao redor da cintura e nem secaram os pés antes de colocá-los nas botas. 

Mikhail, embora permanecesse com a expressão perdida, movia-se com agilidade. O aspecto do soldado afetava seus pensamentos e repetia-se como um looping em sua cabeça, mas o instinto de sobrevivência gritava para que saísse dali e ele o faria.

Adentraram o bosque juntos e caminhavam de volta a vila no intuito de se protegerem com a familiaridade e  avisar as pessoas que algo acontecia próximo dali.

Já não existia paz no percurso, a respiração de ambos se cortava em uma corrida desajeitada e dolorosa. Os sons não condiziam com seus pensamentos tumultuosos e os ramos, que anteriormente os tocavam, agora feriam-lhes os braços. 

Quando, enfim, deixaram a mata, perceberam que o alarme não seria necessário. A agitação já tomava a todos que iam e vinham de um lado para o outro. Alguns escondiam-se em suas casas, para esperar o saque, já outros, corriam para o bosque, na esperança de encontrar abrigo por entre o emaranhado de árvores.

— Pasha, Mikha, seus dois diabinhos! — reclamou Tânia, tomando um em cada mão, como se fossem duas crianças desobedientes — É impossível domá-los, parecem dois bárbaros! Um dia vão me matar do coração, aí ficarão felizes, quando me encontrarem estendida no chão!

Na voz da mulher o tom comum de suas repreensões se deformava em desespero, e Tânia se assemelhava a uma presa encurralada pelo predador.

— O que está acontecendo? — Pavel perguntou.

— Ninguém sabe ao certo, mas alguns Vermelhos passaram esta manhã pela estrada, foram em direção a antiga casa dos senhores. Todos voltaram dos trigais não faz muito tempo, ouviram tiros ao longe. — ela respondeu, enquanto rumava em direção a sua isbá, como se as paredes de madeira fossem protegê-los no caso de uma invasão.

Um Conto do LesteOnde histórias criam vida. Descubra agora