Capítulo VII: Horas Brancas (Parte 1)

1.4K 261 89
                                    

Aconteceu no verão do ano em que Mikhail e Pavel completariam quatorze anos de idade. Era um dia quente, em que o sol ardia na pele junto a poeira da plantação de trigo que ceifavam. Mikha a todo momento passava a mão na testa tentando livrar-se do suor que lhe escorria desconfortavelmente pelo rosto.

— Quer ir até o rio? Eu quero nadar. — Pasha disse. Vinha de sabe-se lá que direção e postava-se ao lado de Mikhail da mesma forma que um espectro faria para assustar suas vítimas.

Em reação o outro rapaz colocou a mão no peito, e respirou fundo, recuperando-se da chegada repentina de seu amigo.

— Está louco? Há soldados por toda a parte! E se eles não nos encontrarem, Tânia nos mata! — respondeu Mikha algum tempo depois, na esperança de acabar de vez com a ideia sem fundos.

— Não suporto mais o cárcere de casa ou do trabalho, é sempre uma coisa ou outra! Cansei dos vermelhos e dos brancos e da guerra, para o inferno com isso! Não conseguimos mais diversão nem em nossas conversas, tudo o que se fala agora é conflituoso. E esse trigo? De que servirá? Se os comboios vão aparecer e requisitar tudo o que plantamos.

— Cale-se, alguém pode ouvir! — repreendeu Mikhail — Certamente você está louco!

Pavel revirou os olhos e passou a barra da camisa pelo rosto. Deixou a mistura de suor e terra encardir o linho já amarelado e logo tratou de bater a foice contra o trigo com a testa franzida e a força de quem pretende espancar alguém até a morte.

— Ou os outros que perderam a sanidade. — rebateu tardiamente.

Ambos se esquivavam dos exércitos e se escondiam do tumulto da guerra civil. Não simpatizavam com nenhum dos lados, repudiavam os conflitos pela destruição que traziam, e depois de tanto tempo, já não esperavam que a vida fosse melhorar muito nos anos que viriam. Desde que chegaram ao mundo só conheceram o caos, ao ponto da estabilidade se tornar uma raridade passageira.

— Se quer fazer o trigo sangrar, saiba que não dará certo — disse Mikhail — O que deu em você? Comeu cobras? Espirra veneno para todos os lados. Não precisa ser grosseiro comigo, Pashenka¹!

Pavel suspirou pesadamente.

— Não me chame assim! — exclamou fingindo indignação diante ao apelido — de qualquer forma, só estou exausto e nenhum sono me acalmaria agora. Mesmo se tombasse por um mês inteiro continuaria cansado.

— Se quiser, podemos trabalhar na horta ou ir à casa de Dasha Kuznetsova.

— E eu que sou o louco! — Pavel parou de executar o trabalho e virou-se para encarar Mikhail — acabo de dizer que estou exausto e me vem com essas ideias corriqueiras. Eu queria mesmo ir até o rio, quero uma aventura digna dos velhos tempos.

— Quer acabar fuzilado, isso sim! Ou então, obrigado a se alistar. — rebateu Mikha.

Se houvessem estranhos próximos o suficiente para ouvir tal diálogo, facilmente chegariam a conclusão de que os dois beiravam uma briga, no entanto, o conflito nada tinha de profundo, configurava-se mais em um jogo de retórica: de um lado Mikha, relutante em aceitar a ideia de Pasha e de outro o rapaz que pretendia arriscar-se um pouco para obter merecida diversão.

— Prefiro ficar diante ao fuzil do que segurá-lo. — respondeu Pavel Iurievitch com toda sua convicção.

Mikha não deixou de pensar que, provavelmente, apesar da fala sem hesitação, se diante de soldados lhe fosse dada a oportunidade de escolha, Pasha, bem como a maioria dos seres humanos, escolheria viver, mesmo que isso significasse acabar com seus iguais no caminho.

— É preciso que se acalme — disse Mikha, colocando a foice de lado por alguns momentos — são dias difíceis e não podemos nos dar ao luxo de perder a razão.

Um Conto do LesteOnde histórias criam vida. Descubra agora