capítulo XIII: O Espírito das Escadas (Parte 2)

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Pavel, em vão, tentava vencer a insônia que o assolava naquela madrugada tempestuosa.

Do lado de fora, a rua era tocada pela primeira nevasca daquele outono. Os flocos, ainda sem a força do inverno, dissolviam-se rápido e mal conseguiam criar uma camada alva no chão de pedras. O vento soprava, assobiava contra as telhas do prédio antigo que, diante à queda da eletricidade, horas mais cedo, mostrava-se completamente apagado e oculto.

Se a tempestade chegasse três semanas antes, Pavel a teria ouvido de forma ainda mais intensa (e apavorante), em seu apartamento. Estaria, naquele instante, tomado pela sensação costumeira de que o telhado sobre sua cabeça seria levado pelo vento forte. Eis, então, uma das poucas vantagens de viver com a família de Mikhail: ali, na nova moradia, ao menos, as tempestades comuns da estação chegavam de forma mais branda.

Com a escuridão, no entanto, os ouvidos de Pasha se tornavam mais precisos na tarefa de escutar e o homem, de olhos fechados, tentando pegar no sono, não conseguia ignorar o rumor da conversa entre Mikhail e Anya, cujas vozes traspassavam a parede que dividia os cômodos. Porém, ainda que conseguisse distinguir as tonalidades grave e aguda do senhor e da senhora, Pavel não era capaz de distinguir as palavras e, por isso, não podia recuperar o tema tratado pelo casal.

Eles conversavam e era tudo o que sabia.

Vez ou outra, Pasha se perdia e já não sabia mais se Mikhail e Anya continuavam a falar ou se ele imaginava um diálogo constante. O desconforto o tomava e o ouvinte intruso focava-se no som do vento, o tomando como modelo, para discernir o que era real do que era uma simulação criada por sua cabeça.

Tinha vezes que imaginava a conversa em sua mente e dava a ela um sentido doloroso para sua condição. Neste caso, o ciúmes o possuía, aquele mesmo ciúmes que durante todos aqueles anos tentara, em vão, suprimir em seu interior.

O sufocava imaginar... o mantinha ainda mais desperto saber que, provavelmente, Anya repousava nos braços de Mikhail e dele recebia as carícias que nas noites secretas eram de Pasha e apenas dele.

Preferia estar dormindo.

Desde sua chegada ali, durante as noites, Pasha fizera de tudo para pegar logo no sono… o trabalho exaustivo, geralmente, ajudava, bem como a releitura de algum livro. No entanto, naquele dia, não podia ler com a falta da luz elétrica e, apesar das horas de esforço físico, o sono lhe era ausente e atrapalhado pelo som distante das vozes do casal no outro quarto (ainda que a tonalidade baixa provasse que não era o barulho, mas sim a inquietação que mantinha Pavel acordado).

Como Mikha podia? Como ele pode, no passado, dedicar-se a outro amor? Será que o fazia de propósito?

Pasha lembrava de um poema de Pushkin, perdido nas páginas de algum daqueles livros:

“Eu amei-a: talvez ainda haja amor
Na minha alma e nunca se apagou;
Embora não se preocupe mais por mim;
Não quero que nada a amargure.
Eu amei-a em silêncio, desesperado
Afligido pela timidez, às vezes pelos ciúmes;
Eu amei-a com todo o meu coração, com todo o meu ser terno,
Que seja amada pelo outro então espero.”

Repetiu aqueles versos quase em um sussurro, mais de uma vez para si mesmo. Sentiu a necessidade de transcrevê-los no papel, quase sentia as palavras do poeta lhe tomarem o pulso, mas encolheu-se no leito… eles riam no quarto? Não, era apenas a cabeça de Pasha, criando mais um devaneio…

Às vezes, Pavel desejava que Mikhail fosse amado por Anya, amado de um jeito que superasse qualquer coisa que pudessem compreender, no entanto, em noites como aquela, em que o ciúme vagava sem restrições pelas entranhas, Pasha chegava mesmo a desejar que aquele casamento se acabasse, que houvesse um divórcio, que as partes nunca mais se falassem direito.

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