24 - Penumbras, Pianos e Histórias de Família

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- Desculpe-me - ele murmurou -, eu não queria assustá-la.

- Eu... eu... A quanto tempo você está aí? - A verdade era que eu tinha estado tão imersa que não tinha visto ele chegar mesmo estando poucos metros à minha frente.

- O bastante. - Era difícil ver sua expressão na penumbra, então eu não tinha certeza se ele estava irritado.

- Desculpa. Eu não queria acordar você.

- Não se preocupe, não acordou. Você toca lindamente.

Ele falou de um jeito sincero, parecia realmente admirado. Senti meu rosto esquentar - fiquei feliz que ele não pudesse ver meu rosto também.

- Insônia outra vez? - Perguntei, em vez de agradecer o elogio.

- Sim. - Ele encolheu os ombros.

Um momento de silêncio se instalou. Não chegava a ser opressivo, mas eu nunca fui adepta de silêncios. E, embora ele não tivesse dito nada a respeito, alguma coisa me dizia que eu devia me desculpar por isso também, então falei:

- Desculpa por invadir a sala e sair usando seu piano. Eu não devia ter feito isso. - E claro que disparei a falar, como sempre. - É só que eu costumo tocar piano quando estou triste e eu estava com saudades de casa e... eu não sei porque estou falando isso.

- Não tem problema. Ninguém utiliza o instrumento há muito tempo. Assim como a biblioteca, é um desperdício que fique sem função aqui. Assim como a biblioteca, pode ficar à vontade sempre que estiver com tempo livre. Porém quanto às saudades que sente de sua família, talvez você devesse voltar para a sua casa.

Fiz uma careta no escuro, que, claro, ele não podia ver. De fato, eu estava com saudades, mas ainda não era o bastante para me convencer a casar com um cara qualquer. Mas a minha cabeça balançando freneticamente em um gesto negativo ele deve ter visto, já que soltou um suspiro resignado.

- Você toca? - Foi o que eu perguntei, em vez de responder sua sugestão. Talvez ele estivesse tentando me expulsar com sutileza.

Em silêncio, ele finalmente desencostou do batente da porta e entrou na sala - eu nunca ia cansar de invejar a forma elegante com que ele se movia. Ele deu a entender que ia se acomodar em um dos sofás, mas inconscientemente me vi abrindo espaço no banco do piano onde eu estava.

Ele hesitou, mas acabou cedendo. Tenso, ele sentou-se ao meu lado, deixando o máximo de espaço que o pequeno banco permitia.

- Não - ele respondeu. - Na verdade, eu sei tocar apenas Cai, Cai, Balão. - Ele fez uma pequena demonstração e eu não pude evitar rir. Ele concluiu: - O piano era da minha mãe. Ela era musicista antes de casar-se com meu pai. Ela tocava em orquestras.

- Uau, que maneiro! - Talvez eu tenha me entusiasmado demais. Agora que ele estava perto, eu podia ver seu rosto, e pude ver um sorrisinho quase imperceptível aparecer nos lábios dele. - Você nunca se interessou em aprender a tocar?

O sorriso que já era quase nada, desapareceu totalmente e seu olhar se desviou do meu, parando em um ponto vazio. O que eu tinha dito de errado? Tipo, eu tinha feito uma pergunta bem inocente, não? Eu não conseguia entender qual era o problema dele. Por que de repente ele olhava para a parede como se eu tivesse lhe contado que o Jack morre no final de Titanic?

Eu estava prestes a tentar consertar a minha pergunta - mesmo sem saber exatamente o que deveria consertar -, mas ele respondeu, ainda sem me encarar:

- Há dez anos, minha mãe havia iniciado as minhas aulas de música. Alguns meses antes que... ela viesse a falecer. - Ele titubeou um instante antes de concluir: - Após sua morte, eu jamais me interessei em aproximar-me do piano novamente.

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