O que ele quis dizer com isso?! "Tudo bem, vamos deixar acontecer" ou " tudo bem, eu desisto"?
Peguei a outra solução, como ele sugeriu. Realmente, parecia melhor. Fiquei me perguntando se eu havia estragado tudo. Será que ele nunca mais ia falar comigo? Eu não estava pronta para desistir. E ele precisava aprender a ser sincero consigo mesmo. Ou ele acha que eu vou deixá-lo ir assim tão fácil?
Aquele não era o lugar nem a hora para esse tipo de questionamento. Precisava manter o foco.
Enquanto fazíamos esse exercício, Ingrid chamava um pequeno grupo de alunos para ver a real sala de restauração, onde estavam as obras que iríamos criticar. Depois que saiam de lá, estávamos liberados da aula. Obviamente, os nossos quadros falsos não foram completamente recuperados. Por menor que fossem, levaria muito tempo, além de não ser o foco da nossa vinda para cá.
Eu fui no último grupo, o menor grupo, com quatro pessoas. Beatriz entrou comigo. René também, já que não havia mais alunos na outra sala para ele orientar. Bloquinhos em mãos, olhamos tudo de perto, ouvimos tudo atentamente. As obras estavam em péssimo estado. Alguma delas tinham manchas que imaginei serem impossíveis de recuperar. No entanto, as que já possuíam um boa parte restaurada, revelação uma pintura de cor intensa e escura, rica em detalhes delicados. Extremamente dramático.
– Esse quadros foram achados no galpão de uma casa antiga, pertencente a uma família influente da época – Ingrid explicava. – A casa foi vendida recentemente e a nova família achou enquanto faziam uma reforma na estrutura já meio debilitada. Esses quadros têm bastante fuligem, então é certo de que houve, em algum momento, um incêndio na casa.
Os temas dos quadros variavam um pouco. Havia alguns com anjos e cruzes, não muitos. Os olhos de Beatriz brilhavam para aquele com aspectos religiosos. Vi quando ela acariciou a cruz dourada que usava em seu pescoço enquanto analisava esses quadros. Os outros pareciam meros retratos bem realistas de mulheres fazendo coisas comuns, como lendo ou tomando chá.
– Por que esses quadros ficaram escondidos por tanto tempo? – Beatriz perguntou curiosa. – Ninguém pensou em expô-los ou vendê-los?
– Não temos certeza – Ingrid disse. – Assumimos que a família escondeu os quadros por vergonha. Artistas dificilmente ganhavam bem e eles provavelmente queriam que o autor, seja quem fosse, seguisse outra carreira. Então devem ter ficado escondidos para não incentivar e com o tempo foram esquecidos.
Famílias que reprimiam os filhos. Agora sim Beatriz ia ter uma real conexão com os quadros.
Quanto a mim, até achei tudo lindo, só um pouco sem graça. Porém um dos quadros em particular chamou minha atenção. Era um dos que estavam em péssimas condições. Havia buracos na tela e em muitas partes a tinta estava rachada, incluindo nos rostos da personagem. Ingrid havia comentado que a inauguração deles seria no próximo domingo. Fiquei imaginando como seriam capazes de restaurar essa peça em menos de duas semanas. Acabei passando mais tempo olhando para este quadro do que para todos os outros somados. Não era nada demais, na verdade. Uma mulher, em boa luz se comparado com os outros, estava lendo sentada em uma poltrona com um leve sorriso no rosto. Entretanto, logo abaixo da saia muito cheia, os calcanhares dela apareciam acorrentados. Era muito discreto, mas não passava despercebido.
– Gostou desse? – René perguntou se aproximando.
Dessa vez não me surpreendi por sua presença. Eu o vi falando com os outros alunos também, então era natural que viesse até mim em algum momento.
– Detestei – falei sincera.
– Por quê? – ele perguntou sorrindo, cabeça inclinada para o lado.
– Por que esse autor louco pintaria uma mulher acorrentada e ainda por cima sorrindo?! O que ele quer dizer com isso?! – eu disse. – Me faz pensar que o autor devia ser algum tipo de monstro. Ainda bem que suas obras ficaram escondidas.
René cruzou os braços, balançando a cabeça positivamente, concordando com o que eu dizia. Ou achei que concordava.
– Quem disse que era um homem? – sugeriu.
– Não era? – olhei para ele surpresa.
– Não sei. Ninguém daqui sabe. A assinatura só mostra as iniciais do artista. Por causa do incêndio não se tem registro anteriores a 1970 dessa família. – Ele deu de ombros.
Olhei mais uma vez para o quadro. E se fosse pintado por uma mulher? Faria alguma diferença? Ainda era uma imagem de uma mulher acorrentada e sorrindo.
– Bom, então ela era uma beata muito chata para achar que alguma mulher estaria contente com isso – conclui.
– É assim que você vê? – instigou.
– E tem outro jeito de ver?
Ele riu alto, divertido. Balançou a cabeça negativamente. Imaginei que agora ele estivesse concordando.
– Bom, você está certa em um aspecto. O nome do quadro é "Liberdade". Está escrito na lateral. Então há um visão um pouco deturpada do autor.
– Viu. Eu estudei direitinho, não foi? – falei, muito orgulhosa de mim mesma.
Mais uma vez, René riu alto.
– Não se esqueça – ele colocou a mão em meu ombro, quase como um abraço, puxou-me para mais perto –, você teve um ótimo professor.
– Será que esse professor não gostaria de aprender algumas coisas com a aluna brilhante dele?
Cheguei mais perto, encostando meu corpo no dele. Coloquei minha mão no cós de sua calça. Ele pigarreou, envergonhado, imediatamente retirando a mão do meu ombro. Porém não se afastou. Pelo contrário. Aproximou seu rosto e falou bem baixo no meu ouvido.
– Ou talvez eu ainda tenha coisas para ensinar a você. – Então saiu de perto de mim.
Senti um arrepio novamente. Ele tinha dito o que achei que tinha dito? Pois o arrepio que senti não havia sido só na nuca. Isso foi um "tudo bem, vou deixar acontecer"? Ou será que ele estava insinuando que eu deveria ser mais bem comportada ou algo do tipo? Por que ele não era mais direto? Por que tinha fazer eu me questionar tanto? Respirei fundo, tentando me concentrar ao máximo para fazer essa sensação passar. Ainda não era lugar nem hora para isso. Ainda.
– Tudo bem contigo? – Beatriz perguntou se aproximando.
– O quê? Ah, sim. Tudo ótimo.
– O que foi que vocês estavam falando?
Olhei para Beatriz um pouco assustada. Achei que ela havia suspeitado de algo. Mas era só sua curiosidade normal por informações exclusivas. Ela queria saber se o professor havia dito algo de importante que pudesse ajudar no trabalho. Expliquei a conversa toda, mas parei antes de dizer que eu queria ensiná-lo coisas, claro.
Contudo, por mais que eu pedisse ao meu corpo para se acalmar, eu não conseguia mais pensar em outra coisa senão o que René supostamente poderia me ensinar. Mas como eu ia me livrar de Beatriz? Será que não seria melhor eu deixar pra lá?
Quando fomos finalmente liberados, ainda era cedo. Beatriz estava empolgadíssima com esse trabalho. Estava decidida a escrever sobre religião e a influência sobre a pintura barroca. Parecia o trabalho perfeito para ela. Eu, por outro lado, nem sabia sobre o que queria escrever, nem estava muito a fim de pensar nisso agora. Quando pus o pé para fora do museu, percebi que se eu deixasse pra lá por mais um dia, era capaz de beijar René na frente de todo mundo na próxima aula. Não queria esperar mais. Sei que disse que esperaria, mas não estava sendo fácil.
– Beatriz, pode ir pra faculdade. Daqui a pouco eu te encontro lá – falei.
◊ ◊ ◊ ◊ ◊
Só digo uma coisa: o momento que vocês estão esperando está perto. ♥️
VOCÊ ESTÁ LENDO
Meu Bom Professor
RomanceLia é uma aluna de jornalismo que está pouco interessada na cadeira eletiva de Crítica da Arte e o professor não pretende pegar leve com ela. Isso não seria problema se Lia não tivesse feito uma aposta com sua amiga Beatriz, afirmando que conseguiri...