Eu devia estar na aula de crítica de arte agora. A aula nunca foi interessante para mim. Agora sem René estava muito menos. Preferi vir cedo para a biblioteca. Muito cedo. Já estava aberta, mas a responsável pelas obras raras ainda não havia chegado. A sala dela estava fechada.
Depois de tudo que aconteceu no dia anterior, ainda cheguei na aula da segunda. Atrasada, mas não fez diferença. Não prestei muita atenção. René e a droga do Comitê ocupavam minha mente o tempo inteiro. Estava enlouquecendo sem saber o que fazer. Para me distrair, já que a aula não estava sendo eficaz, peguei o celular. Foi então que vi que a biblioteca havia respondido. O email dizia que não havia muita coisa com os nomes que eu sugeri, então era possível separar tudo para eu ver no dia seguinte. Mandei outro email confirmando que passaria lá no horário da manhã e aqui estava eu.
Vi uma senhorinha de cabelos pretos cacheados, muito sorridente se aproximando. Ela andava um pouco devagar demais com seu salto baixo e sua saia justa. Ela acenou para mim ao me ver e logo soube que era a responsável pelas obras raras. Fiquei sorrindo ansiosa até que ela chegasse. Nós nos cumprimentamos e ela finalmente abriu a porta para que dava acesso à seção das obras raras.
Ela me encheu de perguntas sobre meu interesse nesses nomes aleatórios e uma casa. Contei toda a história a ela sobre os quadros e meu interesse em descobrir quem os havia pintado enquanto ela me trazia uma pequena pilha de papéis, dezenove revistas, dois livros e um álbum da cidade.
– Entendo – ela disse me dando as luvas e máscaras que eu precisaria para manusear as folhas antigas. – Se precisar de mais alguma coisa, pode me chamar que eu também quero saber quem pintou aqueles quadros maravilhosos!
A senhorinha, que se apresentou como Neide, ficou por lá mesmo. A sala não era grande. Havia três mesas redondas para uso dos pesquisadores e uma mesa quadrada onde Neide ficava. Ela ficava olhando alguma coisa no computador e vez ou outra inquiria sobre a pesquisa. Não acho que fosse papel dela fazer perguntas sobre o que estávamos fazendo. Creio que era apenas por curiosidade. Ou talvez ela estivesse verdadeiramente interessada em descobrir quem era o pintor ou pintora dos recém inaugurados quadros.
Procurei minuciosamente atrás de alguma informação que se sobressaísse. Tirei fotos, fiz algumas anotações, voltei a ler o que eu já havia lido. Tudo atrás de alguma conexão com a casa. Porém, nada ficou muito claro. Eram pessoas comuns vivendo suas vidas comuns. Já passara da hora do almoço, eu estava faminta e sem esperanças.
– Querida, desculpe interromper – Neide me chama. – É que hoje eu estou sozinha e preciso fechar este setor para almoço.
– Claro, sem problemas! – Na verdade eu não pretendia sair até obter minhas respostas, mas não podia deixar uma senhorinha morrendo de fome. – Um tempo longe talvez me faça ver as coisas de um novo ângulo. Conhece algum lugar bom para almoçar aqui perto?
– Eu vou almoçar no refeitório daqui. Quer vir comigo? – convidou-me muito simpática.
Imaginei que seria um pouco estranho comer e conversar com uma completa estranha que devia ter idade de ser minha avó. Sobre o que nós falaríamos?
– Não quero incomodar... – tentei dizer.
– Deixe de bobagem! Vai ser um prazer ter a sua companhia! Vamos?
Ela já foi se levantando da cadeira, e me puxando para ir com ela. Não pude fazer nada.
Com toda essa insistência, achei que a velhinha carente ia acabar me contando de toda sua vida e perderíamos umas três horas até ela tentar me convencer a se casar com um de seus netos supostamente perfeitos demais para este mundo.
– Então é claro que eu beijei ele! Mas o que ele faz? Vai embora dizendo que eu não o amo e pronto! – Pois é, eu que acabei desabafando no ouvido da velhinha. – Como se ele fosse o dono da verdade! – Tomei um gole do meu suco depois de ter falado tanto.
– Sabe o que você devia fazer? – Neide me olhava muito séria, e eu soube que estava prestes a receber um valioso conselho destes cheios de sabedoria que só podem vir de alguém que já viu de tudo e era muito bem resolvida na sua melhor idade. – Case com ele!
Quase que o suco sai pelo meu nariz com o engasgo que dei depois de ouvir uma dessas.
– Er... Eu sou muito nova pra isso... – tentei me sair.
– Bobagem! Eu casei com dezessete anos e vivo feliz com meu marido até hoje! Você não disse que o ama? Então deixe de perder tempo, menina!
Dezessete?! Minha senhora, você deve ser uma pessoa de muita sorte! Porque a maioria das pessoas com essa idade não sabem nem cuidar de uma planta que dirá de um relacionamento! Isso é loucura, amiga! Quem garante que eu ainda vou gostar dele depois de uma ano?!
– Os tempos mudaram, dona Neide. Casamento não tem mais tantas vantagens para a mulher.
– Claro que ainda tem vantagens! Ele vai ter alguém para cuidar das crianças com ele, você não vai mais morar com aquela menina que você não gosta e aposto que a faculdade não poderia mais penalizar vocês se estivessem casados. Sem falar que vocês vão fazer muito mais sexo! – ela disse me fazendo rir alto a ponto de chamar a atenção dos outros clientes.
– Esses são motivos interessantes. Mas são bem particulares. Quais motivos levaram a senhora a casar tão cedo? – eu quis saber.
– Eu era muito presa em casa, não podia ir para canto nenhum. Eu vi no casamento uma maneira de me libertar um pouco daquela opressão. Além disso, meu nome de solteira era horroroso! Queria me casar logo para mudá-lo. – Mais uma vez ela me fez rir alto.
Contudo, parei no meio da risada. Uma ideia fantástica me veio a mente. Podia não ser nada, mas eu precisava verificar.
– A senhora já terminou? – perguntei já me levantando e puxando Neide junto comigo.
Quase obriguei a pobre velhinha a vir correndo comigo de volta à sala dela. Neide ficava me perguntando o motivo de tanta pressa. Eu apenas insistia para que ela fosse mais rápido. Não queria perder tempo com explicações.
Sentei na cadeira e abri uma revista que mostrava a foto da casa e a família que ali morava. A data era poucos anos à frente do quadro mais recente encontrado. Nenhum dos nomes das pessoas naquela foto batia com as iniciais. L e B. No entanto, havia uma Lucélia Cavalcanti. Ela era casada com Álvaro Cavalcanti, porém, filha de Sebastião Bragança. Isso queria dizer que, antes dela se casar, ela era Lucélia Bragança. L e B.
Ela devia ter sido pintora antes do casamento. Mulher era criada para casar, não ser pintora. Os pais devem ter escondido toda a pintura da filha quando ela chegou na idade de casar. Pode ser que ela tenha sido obrigada a casar, pode ser que ela mesma tenha escolhido casar e por isso escondeu seu dom artístico. Eu não podia afirmar nada. Não havia nenhuma fonte que confirmasse ou negasse minhas teorias. Ou será que havia?
Pedi para Neide reservar tudo que ela pudesse encontrar sobre Lucélia Bragança ou Cavalcanti. O protocolo dizia que ela não podia fazer uma reserva para o mesmo dia. Porém Neide ficou tão empolgada com a ideia de descobrir tudo hoje que conforme ia achando qualquer coisa, já ia colocando sobre minha mesa para que eu estudasse. Devo admitir, eu tinha muita sorte que ela era da alta sociedade ou jamais teria achado tanta coisa sobre a vida daquela pobre mocinha. Apenas com os materiais daquela biblioteca, fui capaz de praticamente recriar a vida de Lucélia. Obviamente, muita coisa não ficou clara, como as intenções dela em relação aos quadros e casamento. O mais importante, na verdade.
Lucélia havia saído no jornal como criança pintora prodígio, o que seria minha maior prova de que era realmente ela. Além disso, descobri também que houve pequeno escândalo quando ela fugiu de casa. Casou logo depois que a encontraram. Não havia relatos sobre o motivo da fuga. Cheguei a imaginar que seu casamento certamente teria sido um castigo, porém ela estava bastante sorridente na foto de seu casamento. Teria ela fugido com o marido para que os pais permitissem o casamento? E por que eles teriam proibido? Talvez eu nunca descobrisse.
Agradeci a Neide por sua ajuda colossal. Parti com um sorriso no rosto e um tablet cheio de anotações e fotos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Meu Bom Professor
RomanceLia é uma aluna de jornalismo que está pouco interessada na cadeira eletiva de Crítica da Arte e o professor não pretende pegar leve com ela. Isso não seria problema se Lia não tivesse feito uma aposta com sua amiga Beatriz, afirmando que conseguiri...