Julia narrando
Ganhei no uno 15 vezes seguidas, até o Thiago se irritar e parar de jogar. Gustavo só ficou rindo, e eu também. Ou eles jogam muito mal, ou eu jogo muito bem. Prefiro pensar na segunda alternativa.
O clima entre os nossos pais não era dos melhores, então preferi não me aproximar muito. A minha avó até tenta, mas é difícil... Enfim, levantei e fui buscar carne, quando comecei a ouvir tiros do lado de fora. Vi o meu tio falando com alguém no radinho e parecia ser coisa séria.
— Gustavo, você fica em casa. – Ele ordenou. – Chapadão tá invadindo.
— Só pode ser coisa da Jéssica... – Gustavo murmurou. Quando meu tio deu as costas e saiu, ele correu pra dentro de casa.
Bufei e fui atrás, encontrando-o carregando uma arma.
— Seu pai pediu pra você ficar em casa. – Cruzei os braços.
— Ficar em casa é o caralho, Julia. Vou deixar o Gusmão fazer bagunça aqui não.
— Qual o seu problema com "obedecer ordens"?
— Não é bem a minha praia. – Sorriu.
— Eu tô falando sério, Gustavo.
Ele deu um suspiro e levantou o olhar, me encarando.
— O que a Jéssica tem a ver com isso?
— O pai dela é dono do Chapadão.
— E...?
— E tivemos uma pequena discussão que deixou ela com raiva de mim.
— Pequena? – Ironizei. – Agora você quer ir lá fora mesmo sabendo que não deve.
— Não devo por que?! – Enrugou a testa. – Eu faço isso há anos, Julia. E não vou parar porque meu pai quer me colocar de "castigo".
— Só porque você faz isso há anos não quer dizer que deixou de ser perigoso.
— Eles precisam de mim! – Exclamou.
— Vão saber se virar sozinhos.
— É, mas toda ajuda é bem vinda.
— Gustavo! – Bati o pé no chão.
— Por que você tá com essa implicância?! – Reclamou e levantou a arma, se preparando pra sair.
— Porque eu te amo e me preocupo com você.
Ele desviou o olhar, ficando em silêncio. Meu Deus, como é teimoso. Senti uma presença a mais na sala e dei um suspiro.
— Quer saber, Gustavo? Faz o que você quiser.
Virei as costas fui em direção ao quintal, passando pela Alexa no caminho. Me pergunto se ela ouviu o que eu disse, e espero que não. Me juntei ao Thiago, ficamos abaixados num canto escondido, perto da churrasqueira.
— O Gustavo foi? – Ele perguntou e eu assenti. – Ele é teimoso mesmo.
— Ele é um idiota. Isso que ele é.
— Não adianta ficar com raiva, Julia. Meu irmão sempre deu... – Foi interrompido por um barulho de tiro bem próximo, eu diria que foi disparado da frente do portão da minha avó. – trabalho.
— Mas o que custa ouvir o seu pai pelo menos uma vez? Sério, isso me estressa. Mesmo sendo pro bem dele, aquele garoto prefere ser teimoso e insistente.
— Eu entendo a sua raiva. – Suspirou. – Mas é o que ele gosta de fazer. Trocar tiro, defender a comunidade, viver essa adrenalina. O perigo é o combustível dele, Julia. Sempre foi. – Deu de ombros.
— E se ele tomar um tiro fatal? E se ficar paraplégico?
— Aí ele troca tiro de cadeira de rodas. – Riu.
— Você não tá nem aí?! – Bufei.
— É claro que eu me preocupo também, ele é o meu irmão. Só que não adianta. O Gustavo é habilidoso, então eu prefiro confiar do que ficar com o cu na mão. Vai dar tudo certo. Sempre dá.
Não respondi, só olhei ao redor. Estávamos conversando a sussurros, o meu pai abraçava a minha mãe, enquanto minha avó tranquilizava a Alexa. Todo mundo tava sentado no chão, atrás do balcão, perto da churrasqueira.
Ninguém conversou nas próximas duas horas. A frequência dos tiros estavam diminuindo, até sumirem totalmente. Olhei para o hall, esperando que Gustavo ou o meu tio chegassem logo, mas nenhum dos dois apareceu. Suspirei, tentando manter a calma. Um garoto que carregava uma arma nas costas foi quem entrou na casa, mas não se aproximou da gente, só chamou a Alexa.
Aquele suspense tava me deixando muito aflita. Pra piorar, ainda precisei ouvir meu pai repetir várias vezes "eu sabia que não deveria ter vindo", o que era extremamente estressante pra todo mundo. Só deu pra gente ir embora de noite, e eu não vi sinal do Gustavo em canto nenhum, nem do meu tio. Minha avó também estava morrendo de preocupação. Ao chegar em casa, fiquei atenta no celular, esperando ansiosamente por uma mensagem dele, que não recebi.
Dormi muito mal naquela noite. E na próxima. E também na noite seguinte.
A única pessoa de lá que conversou comigo foi a minha avó. Disse pra eu ficar tranquila, que estava tudo bem. Mas se estava tudo bem, por que ele não falou comigo? Não quero dizer que minha avó é uma mentirosa, mas precisava ouvir diretamente dele que nada aconteceu.
Então, depois desses dois dias, levantei da cama disposta a ir até lá. Tomei um banho gelado, coloquei um vestido qualquer, calcei meu chinelo, passei perfume, peguei meu celular, chamei um uber e fui. Sem tomar café da manhã e sem falar com os meus pais também, pois eles definitivamente iriam proibir. Era aproximadamente 9h da manhã, compartilhei minha localização com o Alexandre no whatsapp... nunca se sabe né.
O motorista era simpático, contei a situação e ele foi me tranquilizando, disse que provavelmente estava tudo bem. Parou o carro na entrada do morro e se virou pra mim.
— Foi mal, mas eu só posso vir até aqui.
— Tudo bem. – Tirei o dinheiro da capa do celular e lhe paguei.
— Espero que dê tudo certo com o seu namorado!
— Não é meu namorado, mas obrigada!
Dei um sorriso e desci do carro, começando a subir o morro. Não sei se algum dia vou me acostumar com algumas pessoas me cumprimentando, mesmo sem conhecer quase ninguém.
Enfim, parti a caminho da casa do meu tio (mesmo sem saber se ainda sou bem vinda lá). A verdade é que nem precisei. De longe, avistei o Gustavo parado em uma esquina com uns garotos que me lembro de ter visto na boca. Ele estava de costas pra mim, mas a minha bunda tatuada em sua panturrilha era inconfundível. Quando minha mente ordenou que eu me aproximasse, uma garota que nunca vi na vida se pendurou nos ombros dele, deixando um beijo estalado em sua bochecha.
Não demorei pra virar as costas, pegar meu celular e mandar mensagem pro motorista que acabara de me deixar no morro, pedindo que me buscasse. Ele veio rápido, quando entrei no carro, não fez pergunta nenhuma, apenas me dirigiu um sorriso.
É, parece que o Gustavo tá bem sim.
∆
10 capítulos pro fim. boa noite.
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Marginal
Fiksi Remaja[+16] Julia nasceu em berço de ouro. Literalmente. Filha de um cardiologista e uma nutricionista, nunca precisou chorar por não ter algo. Seu pai, ao contrário, passou anos lutando para ter a fortuna que conseguiu construir. Marcelo nasceu na favela...