Um

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Júlia narrando

Clara entrou no meu quarto sem delicadeza nenhuma e abriu as cortinas das janelas, fazendo-me gemer frustrada com um travesseiro sobre o rosto.

Bom, eu tenho 16 anos, estou no meio do segundo ano do ensino médio. Meu pai – Marcelo – é médico cardiologista, já minha mãe – Flavia – é nutricionista e dona de um consultório especializado em várias áreas, onde eles trabalham juntos. Isso tudo é bem irônico, já que meu avô “comanda” uma favela. Na verdade, eu nunca fui lá, meus pais dizem que é perigoso e preferem me manter afastada. Há dois anos atrás finalizei meu curso de inglês então sou fluente, joguei futsal, mas parei por ter deslocado o joelho uma vez. Hoje em dia, faço apenas francês e curso técnico em meio ambiente.

— Júlia, sem enrolação. Vamos, sabemos o quanto você odeia chegar atrasada! Veja pelo lado bom, é sexta feira! – Ela puxou o cobertor de cima de mim e me encarou com as mãos na cintura.

— Posso ficar em casa? Por favooor, só hoje?

— Dona Flavia me mataria. – Riu. – Vai arrumando seus livros enquanto eu ponho a banheira pra encher.

Ela dirigiu-se até o meu banheiro e eu suspirei, me levantando. Peguei a mochila e tirei de lá os livros da minha aula passada, os colocando dentro da gaveta e pondo outros no lugar. Meus materiais estavam todos espalhados pela escrivaninha. Peguei minha necessaire escolar e coloquei lá dentro os lápis, canetas, borrachas, marca texto, etc. Depois de tudo arrumado, fui pro banheiro. Clara saiu do quarto e eu tirei a roupa, entrando debaixo do chuveiro.

Não pude nem demorar no banho, prendi os cabelos num rabo de cavalo – mas o corte dele é "repicado" então algumas mechas ficam escapando. Passei hidratante e desodorante, depois vesti as roupas íntimas e minha farda - blusa social branca e saia azul com uma listra branca na ponta. No canto superior direito da blusa tem o brasão do colégio com o nome logo abaixo, Social. Eles são cheios de frescura então tudo tem que ser padronizado, até a mochila. Calcei as meias brancas e o tênis azul marinho. Minha escola é particular mas tem bolsistas, é considerada a melhor do estado do Rio de Janeiro e está entre as cinco melhores do Brasil. Eu sei que meus pais só me colocaram lá por causa de status – o que eu achei super desnecessário, mas já estou estudando lá há 6 anos, então...

Não estava com ânimo nenhum pra passar maquiagem, mas apliquei base, corretivo, blush e gloss transparente, então só peguei a mochila e desci pra tomar café. Minha mãe estava de camisola com uma xícara de café na mão.

— Bom dia. – Disse me sentando à sua frente e pegando alguns pedaços de maçã cortada.

— Bom dia.

— Não vai trabalhar hoje?

— Mais tarde.

Terminei de comer e subi, escovei os dentes, peguei a mochila e saí de casa com o meu pai. A escola ficava no centro da cidade, ao chegar, desci do carro e me despedi dele, entrando na instituição. Eu sempre chegava cedo – a maioria dos alunos, na verdade – para ter mais tempo de se organizar antes de começar a aula. Caminhei até o meu armário e deixei ali alguns livros para que a mochila ficasse menos pesada, logo Camila apareceu do meu lado.

— Bom dia! – Beijou minha bochecha animada, abrindo seu armário ao lado do meu.

— Nada de bom. O primeiro horário é matemática.

— Por isso mesmo tô feliz. – A olhei com as sobrancelhas arqueadas.

— Estranha.

Fomos conversando até a sala. Me sentei na primeira carteira da primeira fileira, ela se sentou também na primeira, porém, na segunda fileira, ao meu lado. A professora Marina entrou na sala com aquela cara mal humorada que ela está sempre e eu fiz careta, pondo os materiais em cima da mesa. Fiz as atividades que ela passou e resolvi os cálculos. Apesar de não gostar da matéria – nem da professora – tenho facilidade em aprender os assuntos e minhas notas são boas.

Após os três primeiros horários finalmente chegou o intervalo. Alexandre faltou, infelizmente. Fui com a Mila até a cantina e comprei um sanduíche e um suco de abacaxi. Ela comprou uma torta salgada e guaraná, nos sentamos numa mesa onde havia um grupo de pessoas. Só me sentei lá porque o Thiago se sentava por ali também.

Thiago é meu primo e amigo. Na quinta série éramos da mesma sala então, ao ver seu sobrenome, achei legal por ser parecido com o meu. Thiago Carvalho Müller. Perguntei a minha mãe se ela conhecia alguém com esse nome e descobri que ele é filho do meu tio Adriano. Não conheço meu tio, nem a esposa dele e nem o outro filho deles.

No fim das aulas, fiquei no portão esperando o meu pai me buscar. Quando ele chegou, entrei no carro e beijei seu rosto, pegando o celular para ver as notificações.

Quando cheguei em casa fui pro quarto, tomei um banho e vesti um macaquinho florido. Calcei os chinelos e desci pra almoçar. Eu sempre almoço sozinha porque é o horário em que meus pais estão no trabalho, infelizmente.

Umas sete horas da noite minha mãe me chamou na sala, desci pra ver e meus avós estavam ali, ambos sorridentes. Corri para abraça-los, estava com tantas saudades. Me sentei no sofá ao lado da minha avó, enquanto eles conversavam.

— Viemos aqui pra dar um aviso e fazer um convite. – A minha avó disse.

— Eu não vou mais comandar o morro. Passei pro Adriano. Hoje a tarde teve um churrasco lá pra comemorar, não viemos convidar vocês porque sabíamos que estariam trabalhando.

— Nossa, o ele deve estar tão feliz. – Meu pai sorriu.

— Em pensar que seria você, né, filho?! – Minha avó arqueou as sobrancelhas.

— Mãe, não começa. – Ele pediu.

Meu pai é o filho mais velho deles, por isso, também poderia cuidar do morro se quisesse, mas preferiu fazer faculdade de medicina.

— Enfim – Meu avô interrompeu os dois. –, amanhã a noite vai ter um baile lá e o Adriano ficaria muito feliz se vocês fossem. Seria muito importante pra ele reunir toda a família num momento tão especial.

— Pai, eu agradeço pelo convite e tô muito feliz pelo meu irmão, mas é uma situação perigosa, entende? Minha família não é acostumada com o tipo de influência que pode aparecer por lá e...

— Marcelo, você foi criado lá. Sabe que, por mais que haja coisas erradas, como em qualquer outro lugar, nós temos controle da situação! – Minha avó disse.

— Eu sei disso mãe, mas quero de verdade manter a Júlia afastada disso tudo. Você melhor que ninguém sabe quanta coisa errada eu já fiz por ali e me arrependo muito. Não quero isso pra minha filha.

— Eu sei que você tá preocupado com isso, mas é apenas uma noite! Só pra comemorar com o seu irmão! Há quantos anos você vem prometendo uma visita à nós? A comunidade inteira sente sua falta! – O vô disse, fazendo meu pai refletir um pouco.

— Amor, acho que não há mal algum. Eu adoraria conhecer seu irmão e meus sobrinhos. – Minha mãe acariciou o ombro dele. Só ela faz aquele cabeça dura mudar de ideia. – O que há de mal em passar um dia com a sua família?

— Um dia? Até poucos minutos atrás era um baile e só! – Ele perguntou confuso.

— Então está combinado, vocês vão para a minha casa pela manhã e vamos aproveitar o dia inteiro! – Minha avó sorriu.

— O que? – Meu pai começou.

— Se não estiver acertando o endereço é só me ligar. – Meu avô piscou e sorriu.

— Não, gente, calma! Não tem nada combinado! – Ele se levantou. – Eu não disse que iria pra lá e, olha, eu não vou. – Meu pai disse desanimando meus avós. – Já disse os meus motivos, eles são convincentes o suficiente pra mim.

— Marcelo. – Meu avô se levantou também, irritado. – Eu não vou aturar essa sua babaquice! Olha bem pra Júlia, ela sequer conhece o tio! É família, porra! Mesmo que você queira afastar, não vou permitir isso. Amanhã, às dez, vou vir aqui buscar ela e a Flavia e elas vão pro morro sim, querendo você ou não.

Meus avós se despediram de mim rapidamente e saíram. Minha mãe olhou brava pro meu pai e foi pro quarto em silêncio, ele me olhou, suspirou, foi atrás dela e eu fiquei na sala assistindo série.

Opinião formada sobre isso? Não tenho ainda. Mas acho que pode ser legal. Sempre tive vontade de ir lá, saber como é e tal.

Nada de muito extravagante pode acontecer.

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