Sessenta e um

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Julia narrando

Ao ouvir as palavras saírem da boca do meu pai, soube que tinha alguma coisa errada. Os dois saíram da sala e, por mais que eu achasse certo dar privacidade a eles, acabei cedendo a curiosidade após alguns minutos e segui até o quintal onde conversavam. Não fiz questão de me esconder enquanto me aproximava, ficando de pé a uma pequena distância do Gustavo, que me encarou por alguns segundos.

— É bom que esteja aqui, filha. – Meu pai disse. – Também quero que ouça algumas coisas.

Levantei as sobrancelhas e o pior passou pela minha mente. Pronto, é agora que o meu pai surta.

— Gustavo, eu não confio em você. E já deixei isso bem claro um milhão de vezes. – Cruzou os braços.

— Então por que tá repetindo? – Gustavo questionou, enrugando a testa.

— Porque em algum momento eu precisaria resolver isso contigo de homem pra homem.

Encarei o meu pai por um tempo, tentando processar se o que ele acabara de dizer era o que eu tava pensando.

— Tu quer sair na mão comigo? – O meu primo perguntou, enrugando a testa.

— O que?! Não! Claro que não! – Papai negou com a cabeça e confesso ter dado um suspiro de alívio. – Quero dizer que vim dar um fim nessa... rixa. Eu tenho muita consideração pelo seu pai, por mais que não acredite em mim agora, ele é o meu irmão e eu o amo. – Cerrou os lábios. – Eu sei que errei em algumas atitudes e principalmente em palavras, disse coisas pra você das quais me envergonho...

— Deveria. – Murmurou.

— Mas isso não significa que eu estava completamente errado. – Voltou a dizer, ignorando o comentário. – Tudo que eu fiz foi pela Júlia. Na tentativa de proteger e cuidar da minha filha, acabei falhando com a minha família, acabei esquecendo alguns dos meus valores principais. Eu sou como você, Gustavo.

Cerrei os lábios ao ver o Gustavo levantar as sobrancelhas num gesto extremamente sarcástico.

— Eu também cresci aqui. Eu também passei pelas coisas que você passou. Minha vida agora não diz nada do que eu vi, ouvi e vivi no passado. A diferença é que eu não entrei pro crime. – Respirou fundo. – No mais, somos iguais. Agora me diz, você pode me culpar? Você, que também é cria da Pedreira, pode me culpar por tentar impedir que a minha filha passasse pelo que eu passei? Pelo que nós passamos? – Enfatizou.

— Não, mas, com todo respeito, a maior merda que você fez não foi comigo, não foi com a Júlia, não foi com o meu pai, foi com a tua história. – Gustavo disse, negando com a cabeça. – Você não teve respeito nenhum pelo lugar que já foi a tua casa. Sinceramente, eu não tenho problema nenhum em te ouvir me xingar de todos os nomes possíveis, falar que eu sou ruim pra tua filha, ou qualquer coisa do tipo, já ouvi ofensa muito pior. – Deu de ombros. – Mas o que você fala da minha casa... isso dói. É feio, Marcelo. Não sentir orgulho de onde tu veio. Porra, tu cresceu na favela, tu sabe a nossa realidade. Lutou pra caralho pra sair daqui, fazer uma faculdade, seguir uma carreira, e agora fica desmerecendo o lugar?!

— Eu nunca quis passar a impressão de que não sinto orgulho de ter crescido aqui, Gustavo. Eu só... conheço os riscos. Você queria que eu ficasse em paz vendo minha filha se envolver com um bandido? – Cuspiu as palavras. – Eu perdi o meu pai pra essa vida. Eu sei como que é.

— Não tenta usar o meu avô como desculpa. – Alterou o tom de voz. – Seu problema não era ver a Júlia se envolvendo com bandido, se fosse, você nunca teria saído do seu condomínio pra se aproximar da família. Você tá careca de saber que o meu pai é envolvido, meu avô também foi, a família quase toda, porra. Seu problema foi notar que a sua filha faz as próprias escolhas, e nem sempre elas condizem com o que tu planejou pra vida dela.

— Não vim aqui pra brigar com você. – Meu pai suspirou, tentando manter a calma. – Eu assumo que fui injusto, e eu me arrependo do que eu fiz. Minha mãe quer paz na família, e eu vou dar paz a ela.

— Veio pedir trégua? – Gustavo perguntou.

Meu pai ficou calado, como se as palavras fossem difíceis demais de dizer. Engoli em seco.

— Vim pedir... desculpas.

Mordi o lábio, vendo ele estender a mão pro Gustavo. Meu primo analisou por alguns segundos a mão estendida, depois se aproximou e deu um aperto firme. Senti algo dentro de mim revirar.

— Eu nunca, nunca – Meu pai enfatizou, apertando a mão do Gustavo com mais força. – vou querer o mal da minha filha, e é exatamente por isso que estou voltando atrás agora. Somente felicidade dela importa.

— Totalmente de acordo.

Após sua última frase, Gustavo trocou um olhar comigo, virou as costas e saiu andando para dentro de casa, me deixando sozinha com o meu pai. Dei alguns passos para trás, me apoiando numa pilastra para tentar deduzir o que exatamente aconteceu. Parece uma piada. É tão irônico termos passado pelo inferno juntos e tudo magicamente se resolver com uma conversa. Como se todos aqueles meses tivessem sido a maior perda de tempo.

— Filha... – Meu pai me chamou.

— Por que você demorou tanto?!

— Porque eu tive medo. – Se aproximou de mim. – Foi a única coisa que me motivou a te proibir de ficar com ele. Júlia, eu não queria ver você se perder nessa vida.

— Eu nunca me perderia. Você sabe.

— Você não entende, meu amor. Quando for mais velha e tiver seus próprios filhos, vai compreender. Eu só percebi o erro que estava cometendo quando te vi perambular pela casa com aquele rostinho triste, isso me doeu. Foi quando eu percebi que te ver infeliz é muito mais difícil do que te ver independente.

— Será que esse circo foi mesmo necessário, pai? – Cruzei os braços. – Será que essa conversa uns dois meses atrás não poderia ter mudado tudo?

— Eu tenho certeza que sim. – Suspirou. – Eu não sou seu inimigo, Julia. Eu te amo mais que qualquer coisa nesse mundo.

— Eu sei, pai, eu também te amo, mas às vezes o amor sufoca.

— Me perdoa, minha filha. – Segurou os meus ombros. – Eu te prendi achando que estava te protegendo, quando a sua mãe me procurou pra conversar sobre isso eu pensei em muita coisa. Não quero que fique com raiva de mim.

— Eu não vou ficar.

— Vai demorar pra eu me acostumar a ver você com esse garoto, talvez eu nunca me acostume, mas eu vou me esforçar, tá bom? Eu não vou implicar, não vou brigar, a não ser que ele te faça algum mal, então...

— Não vai precisar. – Interrompi. – Agora acabou tudo, não sei se faz sentido voltar pra algo que tentamos parar por meses.

— Mas... Júlia... – Enrugou a testa, provavelmente pensando que seu pedido de desculpas foi inútil. – Ah, filha me perdoa.

— É claro que sim, pai. – Me aproximei, abraçando ele.

— Então eu não vou ter que fingir que gosto daquele marginal?

— Ele é seu sobrinho. – Me afastei. – Se você tentasse conhecer um pouquinho que seja do Gustavo, iria aprender a amar ele, como todo mundo ama.

— Sim, ele realmente parece ser muito amável. – Ironizou.

— O coração dele é muito bom. Ele não é só aquela máscara de grosseria e frieza. Talvez agora, depois de ter percebido algumas coisas, você devesse tentar se aproximar e...

— Júlia, não vamos exagerar. Eu reconheci os meus erros e eu pedi perdão igual um homem. Limpei minha consciência. O que mais você quer? Que eu chame ele pra tomar uma Heineken enquanto conversamos sobre futebol?

— Quero que você olhe pro Gustavo além do que ele tenta mostrar. Ele não é uma pessoa ruim. – Neguei com a cabeça.

Me virei, caminhando para dentro de casa onde um almoço frio provavelmente me esperava, mas olhei novamente pro meu pai antes de chegar na porta.

— E ele gosta de Brahma.


agora só falta o último capítulo e o epílogo............. 😿

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