Prólogo

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Quando a escuridão reinava antes de existir vida na Terra, um dos anjos do senhor se apaixonou por uma criatura das trevas. Desse amor para muitos intragável foi gerado um fruto sem nome nem espécie, um ser que não pertencia à luz e tampouco às sombras, uma criança amaldiçoada, incompleta:

- O que será da nossa criança? Não há espaço para ele nem no céu e nem no inferno... - lamentava a criatura de olhos escuros e pele pálida enquanto acalentava o pequeno menino nos braços, havia uma aura sombria sobre ela, mas nem por isso seus toques e gestos com sua prole deixavam de ser ternos.

O anjo aproximou-se dela envolvendo-a com suas majestosas asas brancas numa tentativa de conforta-la enquanto beijava sua testa:

- Eu requeri uma audiência com o pai -pronunciou com cautela- há aqueles que desejam extinguir a existência da nossa cria, mas eu creio que meu senhor é um senhor de justiça e benevolência... Tenho esperança de que ele se apiedará do nosso filho e encontrará um lugar para ele.

- E se não apiedar-se? - a criatura questionou encarando o ser de luz com lagrimas de sangue se formando em seus olhos completamente negros- E se ele concordar com aqueles que desejam extermina-lo? Não me importo se minha existência for extinta, mas não desejo que nada de mal aconteça a ele.

- Se isso acontecer... -os olhos azuis luminosos se voltaram para os céus daquela terra ainda inóspita onde a chama do seu amor havia nascido- Se meu senhor se voltar contra meu filho, então eu me voltarei contra o meu senhor - afirmou com convicção sentindo parte de seu coração se partir com aquilo, ele amava o pai, mas amava mais a sua recém-formada família.

Ao ouvir aquelas palavras a criatura se pôs de pé, aninhou sua criança em seu peito e abriu suas imensas asas negras.

O anjo alçou voo sendo seguido imediatamente por sua amada, seu destino eram os portões de ouro do paraíso onde o juiz celestial os esperava.

Era uma situação excepcional, portanto ambos os reinos se reuniram para o evento. Os lados foram ouvidos e o debate acalorou-se, mas quando uma espada foi apontada para a criatura e seu filho, a voz do senhor que antes se mantinha apenas na posição de ouvinte finalmente se fez ouvir, ecoando imponente.

Um forte e intenso "Basta!".

O som da espada atingindo o solo pode ser ouvido por todos, tamanho o silêncio que se instaurou no local com aquelas palavras:

- Traga a criança até mim -o senhor pediu, e quando um anjo se aproximou para tomar o menino dos braços da mãe ele ergueu sua mão em um sinal claro para que parasse- Quero que ela o traga. -pronunciou seriamente, agora dirigindo seu olhar para a figura feminina pálida e desconfiada- Aproxime-se, filha das trevas, deixe-me ver a criança por quem está disposta a enfrentar meus exércitos.

A criatura então retraiu as asas negras que usava como escudo contra a espada que por pouco não a atingira e caminhou vagarosamente até o pai de tudo e todos. Ainda estava receosa, mas não ousaria desobedece-lo quando isso poderia custar a vida do seu menino:

- Deixe-me pega-lo. -o pai pediu fazendo-a dar um passo para trás- Vamos, criança. Não lhes farei mal, apenas quero vê-lo melhor.

Com essas palavras ela cedeu e entregou sua cria nas mãos que lhe eram estendidas.

O bebê permanecia em um sono sereno a pesar da comoção de outrora, estava envolto em uma manta feita de penas brancas e negras que se supunha serem dos pais da criança e aparentemente eram o que o mantinha calmo, pois bastou que a manta fosse removida para que começasse a resmungar e mover-se:

- O que temos aqui? Não chore pequenino... -disse colocando seu dedo na palma da pequena mãozinha, se surpreendendo quando o garotinho sorriu para ele abrindo suas pequenas asinhas, uma negra e a outra branca- Vejam só essas asas... E parece que terá chifres também, como sua mãe... -comentou tocando duas pequenas protuberâncias, ainda sob a pele, na lateral da cabeça pequena repleta de finos fios negros- É magnifico... Não é bom, nem mal... É como um pergaminho em branco, uma união perfeita de dois opostos... -ninou a criança por alguns momentos deixando todos perplexos- Já escolheram um nome?

- N-não, meu senhor -o pai da criança respondeu levando um sorriso aos lábios do criador.

- Te chamarás Levi -ele disse olhando para o menino que finalmente arregalou os olhos exibindo dois belíssimos orbes num tom de azul cinzento- Levi é aquele que une, tu és a união de dois reinos, meu pequeno... Reúne em ti bênçãos e maldições, não há um reino que seja teu, mas podes pertencer a qualquer lugar... Caberá a ti mesmo decidir...

- Meu senhor, o que significa tudo isso? - o anjo questionou estendendo os braços para receber o filho que lhe foi entregue com extremo cuidado.

- A criança irá viver, a Terra será sua casa. Iremos a observar enquanto ela cresce e se desenvolve. -pronunciou seu veredito causando alguns murmúrios indignados e suspiros de alivio entre os dois povos- O menino traçará o próprio destino, ninguém vai dizer-lhe que está sendo avaliado. Nenhum de vós irá protegê-lo e nem feri-lo... Nenhum ser de luz ou trevas terá permissão para interagir com ele, nem mesmo seus pais. -mais alguns murmúrios ecoaram e dessa vez até mesmo os genitores manifestaram certa tristeza pelo que ouviam. Não queriam estar longe de sua cria, mas o preferiam vivo e distante do que um corpo sem vida em seus braços- Quando eu terminar de avalia-lo mandá-lo-ei ao reino para o qual pender mais... Se será um anjo ou demônio... Ele decidirá com seus próprios atos.

- Obrigado senhor, muito obrigado -exclamou a mulher jogando-se aos pés do criador enquanto suas lagrimas escarlate escorriam pelo alivio de ter seu filho poupado.

- Levanta-te, filha das trevas, e não chores mais. -acariciou o rosto pálido encarando os orbes negros- Vejo luz em teu coração, mais do que em muitos dos meus... Se quiseres viver aqui com teu parceiro eu permitirei -protestos foram ouvidos, mas o criador os calou com um único gesto- Decida-se criança, não farei uma oferta como essa a ti novamente...


Séculos se passaram, juntando se em milênios que passaram a ser milhares de anos. A vida na Terra surgia conforme o pequeno hibrido crescia e se desenvolvia apresentando caraterísticas de ambos os povos sendo as demoníacas predominantes, ao menos em seu exterior. O par de chifres cinzentos se destacava entre os fios cor de ébano e os olhos cinza azulados podiam tornar-se negros em momentos de fortes emoções, seus dentes eram levemente pontiagudos e, mesmo que seu corpo e asa direita fossem mais próximos aos de um ser de luz, não era o suficiente para deixa-lo com uma aparência menos monstruosa.

Logo surgiram os seres humanos, filhos prediletos de deus. O pequeno Levi encantou-se por eles, mas infelizmente o sentimento não era mútuo.

As crianças fugiam dele e os adultos atiravam objetos e frutos estragados contra si por sua aparência assustadora. Chamavam-no filho do demônio e assim ele sentia-se. Não lhe dirigiam outra expressão se não as de medo ou repulsa e, com o tempo, o próprio menino passou a repudiar a si mesmo de forma tão aterradora que o próprio criador decidiu intervir por ele.

"Do amor entre um anjo e um demônio surgiu o primeiro habitante da Terra, esse és tu e aqui é o teu reino, faça o que quiser com ele, mas lembre-se que toda ação terá sua consequência."

The boy and the demonOnde histórias criam vida. Descubra agora