10. O boletim

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Passei o fim de semana remoendo os acontecimentos do parque. O quase beijo de Ícaro e a aparição de Alexander me atormentavam como um filme repetitivo.

A segunda-feira chegou com emoções inquietantes. Primeiro, o receio de reencontrar Ícaro; segundo, o medo de enfrentar Alexander.

Talvez tenha sido só a magia do pôr do sol que fez Ícaro querer me beijar. Afinal, por um instante, pensei em aceitar. Foi uma coisa de momento — e foi nessa esperança que me agarrei nas primeiras aulas.

Quando o intervalo chegou, fui até a cadeira dele.

— Oi... — falei tão baixo que mal cobriu o barulho dos nossos colegas saindo em disparada.

Ícaro ergueu os olhos do caderno.

— Oi, Sofie — ele esboçou um sorriso incerto, os olhos desviantes.

— Você... hum... não vai para o refeitório?

— Eu preciso revisar matemática — ele mostrou o caderno. — Você sabe, nem todo mundo é um gênio que tira dez como você — Ícaro deu um sorriso brincalhão, sem olhar diretamente para mim.

Quis me oferecer para ajudar, mas sabia que era uma desculpa. Ícaro nunca sacrificaria o intervalo para estudar. Seus ombros tensos denunciavam o quanto estava desconfortável.

Eu também estava desconfortável, mas não queria me afastar; no entanto, não ia forçar a barra.

— Tudo bem... Até depois — forcei um sorriso e saí.

Passar o intervalo sozinha serviu para me concentrar no que viria mais tarde. Precisava me preparar para encarar Alexander.

Parte da preparação estava no que vestir. Foi por isso que à tarde coloquei meu armário abaixo em busca de uma roupa adequada. A maioria das peças era lilás — cor que me deixava infantil.

— Minha nossa, Sof. Nada te agrada hoje? — Rosa surgiu na porta.

— Preciso parecer adulta, mas todas as minhas roupas são adolescentes — suspirei, derrotada, me largando sentada na pequena pilha de roupas sobre a cama.

— Por que você quer parecer adulta? Ser adulto é tãããão chato — ela veio se sentar ao meu lado.

Rosa não precisava se preocupar em aparentar adulta, tinha quase quarenta anos. Por isso estava livre para usar blusas como aquela, com estampa de unicórnios brancos.

— Acho que preciso comprar roupas novas — murmurei mais para mim mesma.

Não me lembrava a última vez que comprei algo. Aos treze anos, tio Thales me entregou um de seus cartões de crédito e sempre me incentivava a comprar o que quisesse, mas eu evitava usá-lo. Achava que ele já fazia muito por mim e não queria causar mais despesas.

— Eu adoro compras! Que tal uma sessão de shopping-terapia um dia desses? — Rosa sorriu como uma criança.

Eu não gostava de entrar naquelas cabines de loja do shopping, onde os espelhos grandes mostravam vários ângulos das minhas imperfeições.

— Seria bem legal... — fingi um sorriso.

— Que tal essa? — senti o monte se mover embaixo de mim quando ela puxou algo.

Era a minha blusa preta de botões com manga curta.

— Com essa aqui, você vai parecer uma mulher séria para ele — ela sorriu sugestivamente, mas imediatamente acrescentou: — Seja lá quem ele for. Eu passo a blusa para você!

Rosa era muito doce. Eu gostava dela, mas queria que não fosse minha babá pelo simples fato do que significava ter uma.

Blusa de botões. Calça jeans. Sapatilhas. Cabelos presos.

— Você está parecendo uma trabalhadora de loja de móveis — comentou Rosa, e isso me animou.

Na empresa, Hugo me tratou com a mesma cortesia. Ofereceu sua cadeira, e quando não aceitei, foi buscar uma segunda. Nos sentamos lado a lado.

Ele me distraiu com jogo de cartas no computador enquanto esperava Alexander voltar da sala de reuniões. Mas logo percebi que aquilo não contribuía para a minha imagem de adulta.

— Queria ver as notícias. Você tem um jornal? — perguntei, tentando aparentar madura.

— Você pode ver online, olha só — ele pressionou um atalho, abrindo uma cartela de manchetes.

Nesse momento, Alexander surgiu.

Meu corpo gelou.

— Hugo, não quero ver mais diabo de ninguém hoje. Se alguém vier me procurar, diz que peguei carona pro inferno e fui tomar um cafezinho na casa do capeta.

Ele quase passou reto, mas então me viu.

Alexander parou um segundo e respirou fundo. Por bem pouco não revirou os olhos.

— Vem — ordenou.

Segui-o com passos incertos. Na sala, ele se sentou já abrindo o notebook.

Me sentei e esperei algum sinal de que já podia falar. Ele franziu a testa para a tela e se inclinou como quem via algo preocupante. Os dedos correram pelo teclado e ele ficou imerso, ignorando a minha presença.

A gravata preta estava ligeiramente inclinada para a esquerda e sem querer me imaginei como uma esposa que conserta a gravata do marido.

Fechei as mãos com força para inibir a ação. O que não fez sentido, pois era algo impossível de acontecer.

— Preciso que você assine o meu boletim — tentei soar confiante, embora me sentisse minúscula.

Sem desviar os olhos da tela, ele estendeu a mão. Rapidamente peguei o boletim na mochila e coloquei na mão dele.

Alexander deu uma olhada rápida nas notas, sem expressão. Pegou uma caneta prateada, assinou de forma automática e devolveu sem olhar para mim.

Tirei dez em matemática. Não esperava um reconhecimento dele, mas sequer um olhar? Ele me tratou como qualquer outro papel que assinava ali.

Sabia que deveria sair naquele momento, mas ainda estava presa em sua versão humana do parque. As palavras escaparam antes que eu pudesse contê-las:

— Eu te vi no parque.

Ele parou de digitar, mas não me olhou.

— Eu sei.

Meu coração deu um salto. Ele me viu.

— Por que não falou comigo? — minha voz saiu quase trêmula.

— Você estava ocupada — frio como uma lâmina.

Minha garganta secou, as mãos suaram. Será que ele estava achando que eu beijei outro homem?

— Ícaro é só um amigo...

Ele finalmente olhou para mim.

— Você não tem que me dar satisfação sobre esse tipo de coisa — seu olhar era tão frio quanto a voz.

O jeito que Alexander me olhou fez meu estômago congelar. Seu olhar Ártico não combinava com o que eu tinha visto dele no parque — uma versão mais quente, mais acessível. Agora, naquela sala fria, ele era o mesmo de sempre: gelado e distante.

— Não estou te dando satisfação — falei baixo. — Só achei que...

Ele arqueou uma sobrancelha, esperando que eu terminasse, mas as palavras sumiram na garganta. O que eu achei, afinal? Que ele se importaria? Que por um segundo, teria pensado em mim como sua esposa?

— Se isso é tudo, você já pode ir — disse, já voltando a se concentrar no computador.

Por que doía tanto? Ele só era meu marido no papel. Aquilo não deveria me machucar.

Saí fechando a porta com cuidado, embora quisesse ter batido com força.

Meu marido indesejadoOnde histórias criam vida. Descubra agora