Hoje seria o aniversário de tio Thales.
Normalmente, haveria pizza e sorvete. Apesar de não ficar muito em casa, ele fazia questão de estar comigo em datas comemorativas. Por isso, nunca passei um aniversário ou Natal sozinha. Nunca houve um feriado solitário, porque ele preenchia os vazios que o mundo me deixava.
E embora eu não pudesse mais celebrar com ele, não deixaria passar essa data sem reconhecê-la. Vim ao cemitério direto do cursinho.
Parada em frente à lápide, a saudade me sufocava.
Meus olhos ardiam, mas me esforcei para segurar as lágrimas, porque toda vez que chorava por ele, eu desmoronava. Se isso acontecesse agora, não haveria ninguém para me levantar. Estava quase escurecendo.
Mas como ser forte sem ele? Tio Thales era minha única família.
Ouvi o farfalhar de passos nas folhas secas e me virei.
Alexander.
Fiquei surpresa, mas voltei meu olhar para a lápide. Não estava disposta a lidar com ele.
Não o via desde o beijo no rosto.
Quando ele mandou Gutierre me buscar em seu lugar, tive certeza de que o momento que foi tão especial para mim não passou de atuação para ele. Depois, ele voltou a agir como se eu não existisse.
Mais de um mês de ausência me desiludiu completamente de que aquele gesto tivesse um lampejo de carinho verdadeiro.
O tratamento frio doía, mas ser ignorada doía mais. Com o recesso escolar, não havia situações que o obrigassem a lidar comigo. Ele deve ter ficado feliz por tirar férias de mim.
Alexander parou ao meu lado em silêncio. Apenas o som do vento nas árvores preenchia aquele eco pesado que se estendeu entre nós.
— Sinto falta dele — disse, com voz baixa e grave.
Olhei de soslaio. Alexander encarava a lápide com o semblante tão carregado quanto o céu. Às vezes eu esquecia que ele havia perdido seu melhor amigo. Afinal, ele sequer mandou flores.
— Por que você não apareceu no enterro? — perguntei.
O vento soprou forte bagunçando seus cabelos, que já não estavam alinhados.
— Não deu para ir.
Fechei a boca antes de dizer algo que me arrependesse. Não esperava muito dele, mas isso? Ocupado demais para comparecer ao enterro do próprio amigo?
Após um longo silêncio, ele respirou fundo.
— Aparecer no enterro teria tornado real. E eu não queria aceitar que ele... — Alexander fez uma pausa difícil — ...morreu.
A voz dele quebrou, e algo dentro de mim também se partiu. Vi em seu rosto um breve lampejo do quanto estava abalado, mesmo que tentasse manter a expressão fechada. Tive o impulso de abraçá-lo, mas ele jamais permitiria.
— Sinto muito você ter perdido seu melhor amigo — falei baixinho.
Alexander olhou para mim e, por um segundo, vi uma dor tão profunda nos olhos azuis que quase esqueci toda a mágoa que sentia dele.
— Lamento você ter perdido sua única família — disse com uma sinceridade que me desarmou.
Minhas defesas cederam, e meus olhos marejaram. Nesse momento, gotas de chuva frias e pesadas começaram a cair.
— Vamos — Alexander disse, recobrando a rigidez de sempre.
Lado a lado, caminhamos devagar para fora do cemitério, mesmo com algumas gotas pingando em nós.
Durante o trajeto, a chuva desabou sem timidez, batendo como martelos no teto do veículo.
Alexander entrou na garagem da minha casa e saiu do carro. Acompanhou-me pela porta lateral sem ser convidado. A porta da garagem dava na cozinha, e Alexander ficou por ali com uma naturalidade de quem já conhecia o ambiente.
Deixei as chaves na mesa e fui para a sala, me perguntando quantas vezes ele esteve aqui. Tio Thales sempre me avisava antes de receber visitas, então eu ficava no quarto, pois não queria atrapalhar.
Sentei-me no sofá e observei a chuva forte desabar. Era como se a natureza compartilhasse minha tristeza.
Ter chuva nesse dia era um presente. Tio Thales adorava dias chuvosos. Lembranças de nós dois, em dias assim, usando uma meia de cada um, me fizeram ter vontade de rir, mas essa vontade foi abafada pelo choro que apertava minha garganta. Reprimi com força.
Pouco tempo depois, Alexander apareceu.
— Aqui.
Levantei os olhos e vi que ele me estendia uma caneca fumegante. O aroma de chocolate era inconfundível, mas custei a acreditar que ele se deu ao trabalho de fazer aquilo para mim.
— Obrigada — murmurei, ainda confusa com sua presença.
Ele se sentou ao meu lado. O silêncio entre nós não era tão desconfortável porque o barulho da chuva preenchia o espaço.
Tomei o chocolate devagar, e ele aos poucos me aqueceu por dentro e por fora.
— Não imaginava que você sabia fazer chocolate quente — comentei, quebrando o silêncio.
Imediatamente me arrependi por um comentário tão desnecessário.
— Thales tinha uma mania estranha de fazer isso para os funcionários quando algo dava errado na empresa. Ele dizia que era a bebida certa para os dias incertos — Alexander revirou os olhos para a própria fala.
Mas se ele achava bobo, por que fez o chocolate em um dia tão incerto?
Coloquei a caneca vazia na mesinha de centro e logo me arrependi, pois fiquei sem um equilíbrio tangível para segurar.
— Ele dizia que chocolate quente cura tudo, menos a saudade — falei, com a voz fraca.
Alexander olhou para mim.
— É, ele dizia isso mesmo.
Havia algo nos olhos dele, uma compreensão profunda.
Ele parecia querer dizer algo mais, mas provavelmente já tinha atingido sua cota de humanidade por um dia, então desviou os olhos.
Ficou em silêncio por alguns segundos, mas algo mudou em sua postura. Ele fechou os punhos, como se estivesse contendo uma emoção. Talvez sua rigidez não fosse apenas frieza, mas um escudo que ele usava para se proteger da dor.
— Eu daria qualquer coisa para tê-lo de volta — sua voz quase vacilou, mas ele manteve o tom firme.
A verdade crua naquelas palavras e a vulnerabilidade inesperada que nunca achei que veria em Alexander fez algo em mim ceder. Apesar do distanciamento emocional, ele sentia a perda tanto quanto eu. A dor que ele escondia refletia a minha, e isso quebrou minhas últimas defesas.
Sem que eu pudesse conter, as lágrimas começaram a rolar. Não queria chorar na frente dele, mas já não conseguia segurar. Meu peito apertou impiedosamente, quase me sufocando, e meu choro se misturou com soluços.
Alexander me puxou gentilmente para seus braços.
Fiquei surpresa, mas não resisti. O abraço dele era firme e ao mesmo tempo cuidadoso, como ele se soubesse exatamente o quanto eu estava frágil.
Abracei-o de volta.
As mãos dele repousavam em minhas costas, enquanto meus braços envolviam sua cintura, e, surpreendentemente, aquilo não parecia estranho. Parecia certo. Necessário. Naquele momento, Alexander não era apenas meu marido, era meu abrigo.
E permaneceu ali, me segurando, como uma fortaleza em meio à tempestade, enquanto o mundo desabava ao nosso redor.
Ele segurou o meu mundo.
Escondida em seu peito, chorei até perder as forças.
No fim estava tão fraca, tão cansada, que pouco a pouco o cheiro dele foi ficando distante.
Então... tudo desapare
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Meu marido indesejado
Teen Fiction"Você está na escola, certo? Deve saber o mínimo de interpretação para entender que isso não é um casamento. É um contrato. Um mero pedaço de papel cujo único objetivo é impedir que você vá para um abrigo. Você assina essa porcaria, e cada um segue...