Asas de nanquim

2.7K 347 8
                                    

Eu estava com um leve pedaço de madeira sobre a cabeça, uma tábua, escrevendo a quase um metro de distância do papel, não é a medida verdadeira, claro, segurando a longa manga de meu quimono e olhava com dificuldade para a folha com linhas tortas, minha respiração era controlada e eu quase não oxigenava o suficiente.
Sinceramente, pensei que quando dissesse para Akira que eu tinha conseguido fazer fogo, exagerando um pouco para aumentar minha moral com ele, ele iria me parabenizar e finalmente me mostrarum sorriso genuíno dele e então me ensinaria voisas legais como soltar fogo pela boca ou criar bolas de fogo e tal, mas o que ganhei foi um leve aceno e tarefas simples misturadas tornando aquilo quase impossível. Não pude disfarçar minha raiva, na verdade bufei para Akira quando me sentei sobre a almofada verde.
Mais uma vez a tábua caiu na minha frente fazendo um baque surdo que me assustava todas as vezes, nanquim respingou para todo lado já que dessa vez eu tinha acabado de molhar o pincel e o potinho estava próximo e foi revirado e lançado ao alto por um dos cantos da tábua que agora era preta e bege. Olhei para o lado esperando ver a reação de Akira. Ele estava se levantando.
- Vai onde?
- Tinta.
Suspirei. Ele ia apenas me dar mais tinta. Examinei o quimono azul, agora tinha linhas e bolinhas pretas, passei os olhos para os braços e me deparei com a visão de um padrão de zebra recobrindo minha pele. Como deveria estar meu rosto? Eu o sentia todo molhado. Soltei o pincel sobre a folha já perdida e passei a mão na face. Meus dedos ficaram manchados de preto. Levei a mão à manga e parei, o quimono podia estar perdido, mas ai da parecia errado me limpar nele. Passei os dedos por uma parte ainda branca da folha deixando rastros cinza.
Akira retornou com mais naquim e o colocou sobre a mesa, também trouxe mais folhas, mas as colocou no chão ao meu lado.
Peguei a tábua mais uma vez e sem me importar com a sujeira a coloquei na cabeça mais uma vez. Removi a folha estragada e a amassei, olhei para Akira e senti a forte tentação de joga-la nele por me obrigar a fazer aquilo, mas sabia que seria ofensivo ao mestre . A coloquei no canto da mesa, ele a pegou, desamassou e a observou.
- O que foi?
Ele virou a folha para mim e vi se formar uma leve imagem que lembrava asas na folha, as linhas brancas e finas se destacando no negrume. Juro que fiquei abismada. Como um simples amassado poderia tornar aquilo arte e ainda formar uma imgem tão bela, por mais simplória e confusa que fosse ainda tinha uma beleza surreal.
- Existe uma superstição.
Me atentei a ele.
- Quando nanquim é derramado e forma algo é um presságio, uma leve visão do tempo, seja futuro, presente ou passado.
- Então... o que essas asas significam?
Ele voltou a olhar o desenho acidental. A espectativa crescia em mim enquanto esperava ele terminar de analisar os traços.
- Não faço ideia.
Meus ombros caíram.
- Então, quem faz?
- Meu irmão.
Pela voz dele, mesmo que alterada pelo abafo da máscara, percebi que falar do irmão não tinha o deixado feliz.
- Tudo bem, vamos deixar isso para lá.
Voltei aos papéis a tábua ainda caiu, eu ainda estava suja e os traços errados, mas eu não me importei, estava curiosa quanto ao que ele tinha dito.

◇•°•◇

Nanquim não sai fácil do cabelo. Quando cheguei em casa e Britta me viu ela desabou em gargalhadas, Claren ficou chocada. Eu ainda estava com o quimono sujo, estava tarde quando saí da casa de Akira e eu achei que precisava lavar eu mesma as roupas, afinal ainda não sabia quem cuidava da casa e comida dele e permanecia a possibilidade de que fosse ele mesmo, não queria imaginá-lo lavando a roupa que sujei toda de preto. Nessa hora percebi que a roupa sempre estava limpa cheirosa quando a vestia, quem a limpava?
Claren retirou toda a tinta da roupa com um aceno de cabeça, mas disse que ainda precisaria ser lavado e insistiu que ela mesma o fizesse, cedi depois de ela me lançar um olhar ameaçador, do tipo que não se espera de alguém como ela. Depois de entregar as roupas a ela me dirigi ao banho e vi que a magia tinha funcionado apenas ma roupa. Quando me vi no espelho entendi porque Britta tinha rido tanto e se eu fosse ela também o teria feito. Minha cara estava cinza e preta, apenas meus olhos se destacavam e toda aminha face estava recoberta, nem mesmo minhas orelhas tinham escapado. Enquanto estava fazendo todos os traços a tinta em meu rosto tinha incomodado e eu cocei, muito, o que espalhou mais a tinta e não se via um centímetro de pele corada. Precisei de muita força e energia para tirar toda a tinta que teimava em ficar em mim e quando cansei ainda tinha alguns fios pintados. Vesti um pijama de calças e blusa de botão amarelos que encontrei sobre a cama.
Fui à janela. Estava sem apetite para jantar.
Numa árvore não muito distante havia uma grande gralha albina, ela virava sua cabeça para um lado e para outro, observando. Me afastei da janela, tudo o que não precisava era ter pesadelos com um pássaro me encarando.
Fui para a cama.

Cidade de Magia - Contos de EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora