Cidade de Magia - Contos de Espinhos

Era ele

- O que? Como não sabe? Seus pais...
Ele se calou. Não por minha causa, mas por causa dele. Por um segundo eu esqueci tudo sobre mim mesma e o entendi. Ele havia sido expulso, expulso pelos próprios pais, negado por todos aqueles em que ele deveria se encontrar em pe de igualdade.
O vazio abandonou seu olhar que se dirigiu a mim. Ele tocou meu braço.
- Você ainda está fria. Não sente nada?
Neguei e ele começou a pensar, eu quase podia ver as engrenagens rodando e fazendo as outras funcionarem.
- Isso definitivamente tem haver com seu poder. Temos então fogo e uma espécie de gelo. Sabemos também que você é mestiça.
- Como tem tanta certeza?
Eu mesma tinha chegado a achar que era pura e Britta tinha dito que nunca soube qual a espécie de meu pai.
- Você não tem a característica definitiva de nenhuma espécie. Apenas humanos e deuses são assim e sabemos que você não é humana. Deus? Talvez. Uma possibilidade, mas você não se parece com nenhum dos deuses expulsos e nenhum deus... reconhecido teve filhos no último século. Se você for um deve ser só a metade. Considerando que isso seria verdade, qual seria a outra? Para ter dois inscius em conflito não pode ser humano. Você se parece muito com alf e a maioria deles têm poderes elementais, mas... eu sinto que não é isso. E meu instinto nunca erra.
- Então o que?
- Tivemos algumas espécies perdidas e umas raras que se misturam com facilidade.
Ele encarou o vazio por alguns instantes.
- Ryan, você acha que tem como descobrir o que eu sou?
Ele voltou a me olhar.
- Uma hora seu poder deve se mostrar.
- Mas, mestiços podem nunca descobrir o que são, não é verdade?
- Sim, mas nesse caso apenas um inscius se manifesta até o fim e ele fica incompleto sem o conflito, um inscius precisa engolir o outro para se tornar o inteiro.
Me arrepiei com aquilo. Ele permanecia me analisando, como se um sinal fosse dizer o que eu era.
- Você está desse jeito e eu nunca vi ninguém ficar assim... Agora estou curioso e quase tão ansioso para saber o que você é tanto quanto você... Tem mais alguma coisa que não me contou?
Inspirei pela boca trincando os dentes, não querendo falar. Mas... dane-se! Eu já estava exausta daquilo e eu já tinha deixado escapar de qualquer jeito.
- Primeiro, meu nome mesmo é Tirya.
- Isso não me surpreende, por isso não faça essa cara. E Maika não combina com você.
Sorri satisfeita, ele tinha aceitado muito fácil. Talvez devesse desistir de vez de mentir sobre meu nome.
- Segundo, eu não sou órfã por inteiro. Minha mãe está viva, mas eu não faço ideia de onde ela está. E eu acho que ela pode saber mais sobre o que eu sou, ela deve ao menos saber o que meu pai era, mas ela nunca me disse nada e eu não sei porque, só sei que ela tem medo disso. Terceiro, isso é uma maldição - mostrei o pulso esquerdo - e isso é um mistério.
Mostrei meu indicador e Ryan tomou minha mão, analisando cada linha.
- Eu já tinha percebido antes, mas pensei que não passasse de tinta. Agora vejo que não é. Quando isso apareceu?
- Pois é...
Desviei o olhar, mais segredos deixando de ser segredo.
- Um dia eu estava na Floresta das Cores, encontramos um homem morrendo, ele tinha uma lança cravada no peito. Ele disse para avisar Titania sobre um perigo, mas eu não sabia quem era Titania, e que não era para contar a ninguém que ele tinha morrido.
- Você escondeu um assassinato!
- Não! Eu não sei... eu... tinha sido o último pedido dele e...
Ele passou a mão pelos cabelos.
- Tudo bem... continue. Só espero que não tenha se tornado a assassina mais a frente.
- Não! Eu vi o assassino, ele...
Nesse instante congelei. O assassino. Eu não tinha visto ele apenas naquele dia. Eu o tinha visto mais uma vez. Era ele. Na festa da lua de sangue. Era ele o homem gentil na escada. Era ele. O mesmo que tinha andado pelo corrego e tinha me visto, ele tinha me visto, agora eu tinha certeza, o arbusto não tinha me escondido. Era ele quem tinha me oferecido um sorriso generoso e tinha andado coberto de sangue.