Muito mais

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Eu não podia acreditar naquilo. Eu estava mesmo em um conto de fadas, literalmente.
O rei e a rainha tinham nos recebido imediatamente, ainda me lembrava do olhar que todos nos lançaram quando entramos no reino e no castelo. Ryan falou com o rei com tanta atuação, seriedade que se eu não soubesse a verdade teria acreditado nele. A rainha tinha me lançado um olhar gentil e dito à sua dama de companhia que nos arrumasse um quarto e roupas. O rei nos permitiu ficar até termos como continuar viajem ou retornar. Ele faria questão de procurar pelos culpados. Enquanto ele falava aquilo eu olhava direto para a barriga enorme da rainha. Ela percebeu e a acariciou. Disse que esperava que fosse uma menina. O rei riu nessa hora e ordenou aos criados que nos recebesse com todas as honras.
Agora eu estava no quarto, terminando meu banho enquanto Ryan permanecia do outro lado da porta esperando por sua vez. A água que tinham colocado primeiro estava quente e eu não aguentei entrar, era como fogo direto em minha pele. Nesse instante escutei uma voz, a mesma voz feminina e delicada da mulher de neve, dizendo que eu devia esperar. Só consegui entrar na água quando estava fria como o ambiente. Me lavei sem pressa depois de ter passado mais de um dia sem banhar. Eu vi que todos os cortes haviam sarado e sumido, sem deixar nenhum resquício, mas minhas costas ainda doíam um pouco. Quando saí da água vi que ali tinha um espelho e resolvi aproveitar para ver como eu estava. Assim que fiquei diante de meu reflexo minha boca caiu. Aquela não era a mesma garota que eu costumava ver no espelho, com os cabelos loiros e pele rosada do sol, com algumas manchas causadas pelo mesmo. Aquela garota era linda. Eu tinha que admitir, mesmo que ela devesse ser a mesma eu de agora. A pele era branca como neve, os lábios eram mais fartos que os meus e com bastante cor, contrastando com a pele. As manchas no rosto tinham todas sumido junto com as feridas que tinha adquirido recentemente e os olhos tinham a cor mais intensa e em destaque que os meus, brilhavam serenamente, e o cabelo... estava branco como o de Shun, como o da mulher de neve. Me virei para ver minhas costas, abaixando a toalha para tornar o hematoma visível. Ele não passava de um ponto amarelado, apesar de ainda doer tinha sido uma recuperação extraordinária. Me enrolei novamente e peguei a outra toalha que tinham deixado para Ryan. Abri a porta e lá estava ele de pé esperando. Ele me olhou.
- Está quase completamente curado!
- O que?
- Minhas costas. Aquele seu remédio deve ser incrível.
- Não tem como... Me deixe ver.
Coloquei a outra toalha sobre os ombros, e me virei de costas para ele. Abaixei a toalha que me envolvia antes até que ele pudesse ver o hematoma.
- Isso não é possível...
Nesse instante bateram à porta e abriram imediatamente. Uma criada entrou e lançou um único olhar para Ryan e eu congelados. Deixou um monte de roupas sobre a cama e saiu sem dizer uma palavra. Assim que ela fechou a porta percebi a situação constrangedora em que estava e subi a toalha de novo. Ryan continuou a falar normalmente.
- O remédio não faria isso. - Me virei de frente para ele, Ryan olhou para meu rosto como se percebesse algo pela primeira vez - E todas as suas feridas...
Ele tomou minhas mãos nas dele observando as palmas.
- ... elas sumiram. Isso é... incrível! Deve ser seu novo inscius. O fogo nunca fez isso, não é mesmo?
Neguei. Ele começou a andar de um lado para outro.
- Sedução... aparência... frio... cura... Isso tudo... - ele parou e olhou para mim e eu esperei ansiosa. Ele devia saber. Eu ia saber o que eu era, ou pelo menos metade. - ... Não é de uma espécie específica. Ao menos nenhuma que eu conheça ou me lembre.
- Vamos lá. Pense melhor. Deve conseguir se lembrar de alguma.
Ele negou.
- Não. E eu acho bom que se vista ou iremos causar cochichos pelo palácio, apesar de eu achar que aquela criada não vá se calar por muito tempo. Vou tomar meu banho.
Ele andou e tirou a toalha de meus ombros.
- Ei!
- Essa era minha de qualquer forma.
E fechou a porta. Mais uma vez exibi minha língua para ele sem ser vista. Ele era atrevido demais. E ainda estava irritada.
Fui até a cama e olhei para o monte de roupas que a criada havia tazido. Tinha um outro monte menor do lado. Ergui uma das peças e vi que era uma calça com babados. Então me lembrei de como eram as roupas nos contos de fadas e não me senti mais tão feliz.
Vestidos com camadas e mais camadas de tecido.

◇•°•◇

Levei uma hora para conseguir vestir tudo. Quando Ryan saiu do banho eu ainda estava na terceira camada de roupas e ele riu de mim enquanto pegava seu monte pequeno e voltava para a segurança da porta. Quando retornou eu ainda lutava para entender como usar a próxima. Desisti do espartilho assim que o vi. Quem ia notar se tinha uma peça a mais ou a menos? Eu tinha visto a gaiola no canto do quarto, mas também desisti dela rápido como desistiria de comer brócolis, não precisava olhar uma segunda vez. Ryan já estava em seus novos trajes elegantes e ria de mim enquanto vinha se sentar na cama, para me esperar.
- Por que não pede a ajuda de uma criada?
- Elas iriam me forçar a usar a gaiola e esse sufocador. Nem pensar.
Ele continuava rindo enquanto eu fazia careta para outro vestido.
- Se fosse você que tivesse que vestir isso duvido que risse.
- Eu riria de mim mesmo por no final estar usando um vestido. Acho que calças combinam mais comigo.
Não imaginar ele de vestido era impossível.
- Muito engraçado.
- Quer ajuda?
- E você sabe como se usa isso?
- Tenho bastante conhecimento sobre diversas coisas.
Ele pegou uma peça e a amarrou em minha cintura. Nunca imaginaria onde aquilo iria.
- Imagino que tenha bastante experiência com essas roupas. - eu estava sendo grossa, o chamando indiretamente de cafajeste ou qualquer coisa que o atingisse - Deve ter tirado muitas.
Ele continuou me ajudando tranquilamente.
- Na verdade não.
Olhei para ele surpresa. Ele deu de ombros.
- As pessoas não gostam de se aproximar de deuses expulsos. Somos como o azar em carne.
- Então...
Ele parou as mãos onde elas estavam e me lançou um breve olhar, com um sorriso.
- Nem mesmo sendo eu consegui ter uma mulher do meu lado.
Mesmo com o tom de egocentrismo eu pude sentir a tristesa em sua voz. Ele devia ter se apaixonado e por ser o que ele era foi rejeitado. Dessa vez deixei minha raiva desmanchar e me permiti ser solidária com ele.
- Acredito que possa terminar sozinha. Irei pedir um pouco de água para nós antes de descermos.
E ele saiu, sem me lançar um olhar mais.
Então eu soube. Ryan era muito mais do que deixava transparecer. E aquela áurea negra não era seu interior, mas algo que impuseram nele.

×××
O próximo cap tem o tamanho normal.
Mas esse deve ser consolativo.
Espero que tenham gostado!

Cidade de Magia - Contos de EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora