Leque

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Quando acordei já era tarde e por um momento me desesperei, eu sentia uma leve tontura e sabores estranhos na boca. Lembrei que naquele dia não teria que andar com Shun até a escola. Que não tinha que assistir aula ou mesmo treinar com Akira. Aquilo tinha acabado e seria naquele dia que eu arrumava minhas malas. Que eu diria adeus e pela noite estaria entrando em um trem com Lan para a cidade maldita, para a Floresta sem fim. Me permiti pensar um pouco em como seria vestir um uniforme e ser da Guarda. Eu os tinha visto, usavam roupas brancas e armadura amarela. Tentei me visualizar nas roupas, mas não consegui. Pelo menos não teria que usar saia todos os dias. Um ponto positivo, mas que não se comparava a tudo que iria perder ao partir depois de finalmente me acostumar com a nova vida. Fechei meus olhos mais uma vez esperando poder voltar a sonhar. E quase tive êxito.

"Você devia me ajudar."
Era a garotinha. Ela caminhava de um lado para o outro. Seu vestido branco estava mais sujo e rasgado que nunca. Os cabelos desgrenhados e o rosto arranhado.
"Eles estão invadindo. Eles estão nos perseguindo. Eles estão nos matando."
Uma angústia tomou conta de mim. A cada palavra o rosto dela se contorcia em mais raiva.
"Quem é voce? Ao menos é real?"
Ela me lançou um olhar sombrio.
" Ah! Eu sou real. Mas você não é. Sua vida perfeita não é. Muitas vezes eu quis ser como você. Por que acha que estamos aqui?"
"Eu não sei."
"Exatamente. Você nunca sabe de nada. Você não pode me salvar. Ninguém pode nos salvar. Sua vida anda muito boa, não é? Com amigos felizes. Com uma casa confortável. Com pessoas que realmente se importam com você. Mas isso vai mudar. Você vai sofrer como eu. Você não merece mais que eu. Estou cansada de ser sempre assim. Não é justo que eu passe tudo isso. Tudo vai mudar a partir de hoje. Tanto para você quanto para mim."
"O que quer dizer?"
Os espinhos a rodearam, mas dessa vez ela não pediu por ajuda. A garotinha ruiva tinha sido substituída. Ela não era mais dócil. Não parecia mais uma garotinha.
"O trem da ruína está chegando. E você vai embarcar nele."

Quando abri meus olhos senti um calor colossal, meu corpo pesava e os sabores estranhos e bons tinham ido embora. Escutei batidas na porta do quarto e me sentei. A porta se abriu sem mais delongas e Britta entrou no quarto. Ela estava estranha. Suas roupas costumeiramente pretas haviam sido substituidas por um vestido florido e o cabelo colorido continuava da cor do de Claren. Ela carregava um expressão carrancuda.
- Eu estou te chamando há séculos.
- O que foi?
Esfreguei meus olhos.
- Claren disse que devia descer e comer algo. Ah! E uma pessoa deixou algo para você. Eu coloquei na cadeira.
- Quem foi?
- Não sei. Claren que recebeu. Ela só me deu para trazer aqui. Está ali.
Ela apontou para a cadeira onde eu tinha sentado ontem à noite quando Claren arrumou meus cabelos. Lembrando disso levei a mão à cabeça e percebi que estava com os cabelos  soltos. Mas ainda usava o vestido vermelho. Como eu tinha ido parar em casa? Eu não lembrava de nada. E Adam! Será que ele tinha me perdoado?
- Já vou indo...
Cantarolou Britta. Eu a encarei, ela rebolava muito.
- Para onde vai?
- Mesmo se eu dissesse você não ia saber.
Dei de ombros.
- Uma indicação seria reconfortante.
Ela parou e olhou por cima do ombro.
- Grale D'Findor.
Ela saiu antes que eu fizesse mais perguntas. Como: E a loja?
Me levantei e segui até a cadeira. Uma bolsa de tecido. A peguei e tirei o que havia dentro. Um leque. O abri e vi sua beleza e delicadeza. Era branco com desenhos de flores violetas, muito parecido com o de Akira. Minha boca se abriu involuntariamente. Peguei a bolsa de tecido verde com corda dourada e abracei o leque e a bolsa juntos. Ele havia partido e logo eu também iria. Aquela era uma lembrança perfeita dele que sempre carregava aquele leque dele, ele usava quando manifestava seu poder, ar.
- Maika!
Claren chamava do andar de baixo.

Cidade de Magia - Contos de EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora