Partida

2.3K 312 4
                                    

- ...logo ou te derrubo daí.
Abri os olhos, o teto não passava de tecido diferente da madeira a que tinha me acostumado.
- Até que enfim. Achei que ia ter que te arrastar pelo chão durante a viajem toda. Ande logo. Estamos partindo.
Me sentei. Ryan estava ali, sentado na cama vazia de Lan.
- Ande! Quanto mais cedo sairmos mais cedo chegamos.
Ele continuou esperando. O encarei por alguns segundos assimilando as memórias, onde eu estava, o que tinha que fazer... Ele ergueu as sombrancelhas e eu me levantei, me apressei, peguei a mochila, o uniforme e parei. Me virei para ele.
- Posso me vestir?
Ele não se moveu.
- Deve.
Esperei que ele se levantasse e saísse, mas ele continuou ali.
- Posso ter privacidade?
Ele soltou um suspiro como se aquilo fosse inútil e saiu. Percebi que ainda estava escuro e a única que não estava ali era Lan, o som da respiração lenta de todas inundava a tenda, Alex roncava junto a outra garota que não tinha tido a oportunidade de conhecer. Me perguntei para onde ela teria ido. Vesti o uniforme pensando na conversa da noite anterior em volta da fogueira. Senti que tinha perdido algo, ou feito algo, lembrei de Alex oferecendo a garrafa, de Lan a pegando e logo depois eu, não acredito que tinha mais uma vez bebido algo de conteúdo duvidavel. Quando terminei saí com a mochila nas costas.
Ele também tinha uma grande mochila nas costas, ele usava luvas de palmas e as mangas estavam arregaçadas, apesar do frio. Olhei ao redor esperando poder ver Lan. Ela iria conosco?
- Vamos andando.
Aquela era minha resposta. Acenei e o segui floresta adentro.

◇•°•◇

Eu tinha achado que não levaria muito tempo, mas que grande ingenuidade a minha. Além de longo o caminho pela floresta era difícil, as vezes com raízes retorcidas prendendo meu pé, outras com folhas em decomposição formando uma grossa camada sobre o solo e com o orvalho se tornava escorregadio, e ainda as vezes íngreme, com rompimentos no solo súbitos formando caminhos estreitos e distantes com apenas duas direções, frente ou atrás.
Já deviam ter se passado algumas horas de silencioso percurso interrompido apenas por instruções como cuidado, ali tem uma vala, essa planta é venenosa, vamos nos afastar dali, tem um animal próximo. Apesar da respiração ofegante resolvi iniciar uma conversa.
- Quanto tempo vai demorar para chegarmos?
- Mais um dia se formos rápidos.
- Por que temos que ir na frente?
- Demora para conseguir mover todos e o acampamento e alguém precisa ficar de olho no reino.
- Mas não é perigoso? Você disse que os guardas congelaram junto com os reinos.
- Se ficarmos distantes não há risco.
- Então vamos acampar do lado de fora e observar?
- Basicamente.
- Quanto tempo vai demorar para eles chegarem.
- Vão sair apenas em dois dias de lá e deve demorar mais dois ou três para chegarem, o capitão gosta de ser rápido, mas é difícil fazer mais trinta pessoas pensarem do mesmo jeito.
- O capitão parece ser rígido.
- E ele é, com todos, inclusive ele mesmo.
- O que levou ele a vir para a floresta sem fim?
- Ele tem um passado nebuloso.
- E você?
- Você?
Ele parou e se virou. Se aproximou e eu me senti pequena, aquela áurea negra emanava dele de forma assustadora.
- Já me trata desse jeito?
- Desculpe.
Ele sorriu de lado.
- Tudo bem, não é como se eu me importasse com essas hierarquias de qualquer forma.
- Mas vo...cê parece respeitar bastante o capitão.
- E eu respeito, mas não é por ele ser um capitão. Fray também é, mas nem por isso eu a respeito como ao Than.
Ele voltou a andar e eu me senti aliviada.
- Então, fez o que eu disse? Perguntou sobre mim?
- Perguntei.
- E o que disseram?
- Que... - talvez Fray tivesse brincado comigo e ele fosse putra coisa - ... vo...cê é um deus.
- E o que achou disso?
Ele continuava à frente, afastando galhos e com o rosto invisível para mim.
- Eu achei que... era estranho. Apesar de...
- Eu ter uma espécie de sombriedade?
- Sim. Me parecia uma pessoa normal.
- Normal, você diz. Que tipo de normal?
- Não sei, apenas... normal. Apesar de me causar calafrios.
Ele parou.
- Eu causo calafrios?
Senti que tinha falado algo errado. Ele se virou e mais uma vez eu era uma formiga diante dele. Forcei o ar a chegar aos meus pulmões. Ele ergueu a mão e a pousou sobre minha cabeça.
- Vai se acostumar. - ele assanhou meus cabelos - Assim está melhor, aquela sujeira toda a tinha deixado parecendo um trasgo.
- Um trasgo?
Falei indignada, ele mangou de mim.
- Sim, um trasgo. Mas não se sinta ofendida, agora você parece um brownie.
Inspirei pela boca.
- Brownie? Está dizendo que isso é uma melhora!?
Empurrei seu braço tirando a sua mão de minha cabeça e comcei a ir na frente pisando forte e apertando os punhos, ainda podia escutar seu riso atrás de mim.
- Você sabe ao menos em aue direção está indo?
Bufei, e continuei andando.
- É claro que...
Eu escorreguei e comecei a cair, deslisando por uma encosta que não tinha visto, soltei um grito de susto e escutei Ryan me chamar, mas eu já estava rolando sobre as folhas em direção a um dos caminhos de direção única e profundos demais para escalar.

Cidade de Magia - Contos de EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora