15 § A fragrância de Clara

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Bruno consola Érica após a visita tumultuosa de Eva. 

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— Bruno —

— Bruno —

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— Gostava que viesses comigo a um sítio. — foi o único que Kika me pediu, antes de me fazer percorrer cerca de setenta quilómetros de automóvel.

Surpresas nunca foram o meu prato forte. E a cada nova indicação de Érica, a minha impaciência ia aumentando. É que pelo menos quando um GPS ordena uma nova direção, já sabemos qual é o destino final e podemos questioná-la. Contudo, Kika teimava em ir-me guiando pelas diferentes estradas, passo a passo, sem adiantar nada.

No entanto, apesar de estar irritado, procurei controlar-me dum modo heróico. Pelo menos Érica parecia agora mais calma e descontraída.

— Podes estacionar onde encontrares um lugar. — ordena-me finalmente, quando chegamos perto daquilo que parece ser um castelo, no topo de uma vila.

Quando saímos do carro, Kika pega nos dois ramos de flores que comprou pelo caminho. Continuo sem perceber o que se passa.

— Esta aqui é a igreja do castelo. — conta-me, à medida que subimos a escadaria até ao dito edifício de cor acastanhada, com um estilo gótico. — Quando era mais miúda pertencia aos escuteiros e este era o nosso ponto de encontro. Adoro este sítio!

Contornamos a igreja pelo lado direito, onde há um pequeno jardim coberto com arvoredo e adornado no que parece ser um labirinto. O acesso à igreja é nas traseiras do castelo. Daí tem-se a vista para diversos terrenos cultivados ao longo das colinas daquele concelho. O alaranjado do sol, que já desce no horizonte e banha toda aquela paisagem, transmite um sentimento de serenidade.

— Todos os domingos de manhã costumava vir aqui à missa com o meu pai. Obrigações de quem queria permanecer nos escuteiros. E o meu pai, ainda que não muito religioso, fazia esse esforço de bom grado comigo.

É clara a reverência que Érica demonstra ao referir-se ao pai. Os olhos dela cintilam num afeto e amor puro.

— Acho que o meu pai nunca faria um sacrifício assim por minha causa. — confesso-lhe, revelando um pouco das frustrações que normalmente oculto de toda a gente. — Pelo menos nunca deixou transparecer que se orgulhasse de mim ou que tivesse a mínima admiração pelo homem em que me tornei.

— Oh, Bruno! — fala-me com ternura, acariciando-me a face. — Talvez fôsse apenas a sua forma de se expressar. Há pessoas muito reservadas que muito dificilmente revelam os seus sentimentos.

Kika dá-me o seu braço e prossegue contornando o exterior da igreja comigo. Descemos alguns degraus até ao cemitério que ladeia a igreja do lado oposto ao jardim. Quando entramos, começo a perceber a utilidade das flores.

— Hoje fazem seis anos que o meu pai faleceu. E não queria deixar passar esta data sem lhe fazer uma visita e prestar a devida homenagem à memória dele. — revela-me, quando paramos junto à campa dum homem, que pelo apelido depreendo ser o pai dela.

O meu íntimo fica consternado ao ver Kika depositar um dos ramos de flores junto à fotografia do pai, acariciando a pedra onde a inscrição está gravada.

Aquele gesto desperta em mim um sentimento de culpa e de remorso, por não ter comungado duma relação assim com o meu pai. Este cenário é doloroso para mim e faz-me interrogar onde falhei como filho, para que eu fôsse consecutivamente preterido.

— É algo que nos marca para a vida toda e que jamais conseguiremos ultrapassar completamente, não é Bruno? — questiona-me, como se pudesse ler a minha mente. — No inconsciente, crescemos a acreditar que eles vão estar sempre connosco. Afinal, desde que nos lembramos de ser gente, vimo-los ali à mesa de refeição, ao lado da nossa cama à espera que adormecêssemos ou à porta de casa a aguardar que regressássemos da escola nalgum dia em que nos distraímos um bocado mais na brincadeira com os colegas.

É impossível não me rever na descrição que Kika faz. Porém nesses cenários vejo sempre a minha mãe e raramente o meu pai. As recordações associadas ao meu pai são as suas cobranças, o seu descontentamento com alguma falha minha e as suas vaticinações daquilo que ele estava certo que eu jamais alcançaria.

— Procuro não pensar muito nisso. Tenho dificuldade em imaginar-me sem a minha mãe. — contesto com a voz algo embargada.

— A morte dos meus pais é a maior perda que já tive na minha vida. É como se me tivessem arrancado o chão debaixo dos pés. Tive que aprender tudo de novo. Sabes a sensação dum dia para o outro mudarem-te as regras todas que tinhas dado como certas, como verdades universais? Assim foi para mim, ter de enfrentar um mundo sem os meus pais.

— Entendo perfeitamente, Kika! A morte do meu pai é um evento demasiadamente traumático para mim também. Especialmente atendendo às circunstâncias em que se deu. — procuro evitar que a lembrança se torne nítida na minha mente, para não ficar abalado. — Ele era a referência de tudo aquilo em que me queria tornar. Era o meu ídolo! Talvez por isso tenha passado toda a minha vida a buscar a aprovação e o reconhecimento dele.

Foram anos de esforço e dedicação convertidos em sucessivas frustrações por não granjear a reação que esperava do meu pai. Ninguém se empenhou tanto em ajudá-lo com a empresa, quanto eu. Contudo, o meu pai continuamente duvidou das minhas capacidades para ser o seu sucessor.

Kika levanta-se por fim e agarra no outro ramo de flores. Pega-me de novo pelo braço e guia-me pelos corredores do cemitério. À medida que começo a antecipar aonde nos dirigimos, o meu corpo começa a tremer involuntariamente nas entranhas. Acentua-se um desconforto na barriga, semelhante àquele que experimentamos quando andamos nos altos e baixos da montanha russa a grandes velocidades.

Depois da morte da mãe de Érica, eu nunca tive coragem de buscar o paradeiro do corpo dela. Simplesmente era-me insuportável conceber a ideia de que ela tinha partido definitivamente deste mundo, que a tinha perdido para sempre. Preferi agarrar-me à sua recordação em viva e apagar tudo o relacionado com os seus últimos momentos e a subsequente tragédia.

— Esta é a campa da minha mãe, Bruno! À semelhança da tua relação com o teu pai, também as emoções que a minha mãe desperta em mim são conturbadas. Ela abandonou-me quando eu tinha apenas nove anos. A minha vida e a do meu pai nunca mais foram as mesmas a partir desse dia em que ela saiu de casa e nunca mais voltou.

Rever a fotografia dela, consumida pelo tempo, açoita-me a alma com um violência devastadora. Especialmente quando tenho as duas ali frente a frente. Uma cheia de jovialidade e com um futuro diante de si, a outra da foto que possuía fantasias semelhantes quando tudo terminou abruptamente.

— Mesmo apesar do que aconteceu, procuro conservar as minhas recordações dela. Sabes que continuo a usar o perfume da minha mãe? — Kika estende-me a sua mão para que eu possa cheirar a fragrância. Naquele instante apercebo-me de que no dia que a entrevistei, antes de ter notado a sua linguagem corporal ou ter sequer visto a sua face, foi aquele aroma que na realidade colocou os meus sentidos em alerta.

Sim, aquele era o perfume de Clara. O cheiro que eu pensava ter esquecido, mas que o meu subconsciente jamais poderia apagar do meu próprio ADN.

— Bruno, isso são lágrimas? Nunca te tinha visto chorar. O que se passa?

Sem que me tenha apercebido, as minhas emoções parecem ter-me denunciado. Mesmo depois de todos estes anos é-me impossível ocultar o que houve de mais verdadeiro em mim: o meu amor por Clara.

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Curiosidade: para este capítulo, usei como cenário uma das partes mais icónicas do meu concelho natal, a Lourinhã!

A Esposa PerfeitaOnde histórias criam vida. Descubra agora