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< Capítulo anterior: 35§ A canção do mar
Eva descobriu a identidade do ocupante da casa e a conversa não podia ter corrido pior...
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— Tiago —
Oiço os passos de Eva em direção à porta de saída. Suspiro aliviado, com a esperança de que ela tenha agarrado nas suas malas, chamado o motorista e vá embora duma vez por todas.
Espero que ela regresse para a sua existência desafogada, junto da família que um dia foi minha. Peço pouco da vida, apenas que me devolva a paz e o sossego em que tenho vivido nestes últimos vinte anos, longe dos Medeiros.
Mas, parece que não vai ser tão fácil assim. Momentos depois constato que Eva está na praia, a protagonizar aquilo que poderia ser um strip, não fosse o seu jeito atrapalhado, quase duma mulher embriagada. Terá ela bebido antes de eu chegar?
Não percebo o que ela pretende com aquele espetáculo? Despertar a minha atenção? Sim, porque certamente que ela tem noção de que a posso observar desde a janela da cozinha!
Observo incrédulo e num crescendo de cólera todo o show de exibicionismo. A forma displicente com que se livra da roupa, dos brincos e demais adereços, enquanto se dirige lentamente para o mar.
Certamente mais uma excentricidade de mulher rica! Eva deve estar acostumada a banhos noturnos de piscina. Porém o mar não é propriamente a piscina do jardim nas traseiras duma mansão rica.
Afinal de contas, ainda não estamos no verão, e a temperatura da água àquela hora da noite pode não ser a mais acolhedora, pelo menos para as pessoas acostumadas a piscinas cobertas ou até mesmo aquecidas.
Se eu não dei já também os meus banhos noturnos naquele mesmo mar? Sem dúvida que sim! Mas eu estou acostumado.
Faz parte da minha convivência com aquele gigante azul que está todos dias ali em frente à minha porta. E então nas noites quentes de verão, sabe mesmo bem um banho da meia-noite, longe dos olhares indiscretos. A água quase morna, nessas alturas do ano, é capaz de acalmar cada músculo do meu corpo, como um bálsamo relaxante.
Eva entra agora no mar, apenas preservando a sua roupa interior. Por mais que tente ignorar tamanha encenação teatral e continuar a preparar a minha refeição, não consigo.
O que se passa na cabeça daquela mulher? O que ela quer de mim? Ao que veio e porque teima em ficar? É este algum jogo perverso que aprendeu com o meu irmão?
Afinal, após tantos anos de casamento com Bruno, não me admiraria que tivesse copiado alguns dos seus comportamentos.
Também o meu irmão sempre teve a necessidade de se sentir o centro do universo dos meus pais. Valia tudo para ser ele o foco da atenção, desde birras infernais a armações mais rebuscadas e ardilosas, nas quais sempre foi exímio.
Apesar de ele ser o irmão mais velho, tinha constantemente a necessidade de provar ao meu pai e à minha mãe o seu valor. Nunca consegui entender a insegurança dele, muito menos as maneiras com que ele decidia a mascarar. Num momento parecia o meu melhor amigo, para no seguinte me denunciar em frente aos meus pais por algo absurdo, e por vezes completamente falso.
O tempo passa e Eva não emerge da água. Aquilo não pode ser apenas uma cena melodramática. A minha consciência dispara agora as sirenes de que algo não está bem.
Largo tudo e corro porta a fora! Galgo pela pequena praia e voo para o mar. Estou possuído pela mesma adrenalina de horas atrás, quando combatia aquele maldito incêndio.
O meu corpo subitamente esqueceu o desgaste de todas as horas de mangueira em punho a lutar contra as chamas que deflagraram durante a tarde. Um fogo que teimosamente tinha-se encaminhado em direção a algumas povoações e cortado o trânsito numa das principais artérias daquela zona.
Fora mais uma das inúmeras corridas contra o tempo, a que um bombeiro tem de estar acostumado. Quando existem várias vidas em jogo, não há margem para procrastinar ou deixar para depois.
Eu e mais um punhado de colegas tínhamos nos desdobrado em esforços para controlar o galopar das chamas. Todos estávamos cientes de que era crucial evitar o pânico das populações e ativar todos os planos de contingência. O desespero podia levar as pessoas a tomarem decisões irracionais que punham em risco a sua vida e a dos demais.
Assim como mais cedo não fora a altura de encontrar os culpados por aquele ato perverso, que só podia ter causa criminosa, agora também não havia tempo para pensar no que levara Eva a entrar no mar.
— Eva! — grito, em vão, sem que ninguém me escute ou me responda. Volto a mergulhar, procurando-a no meio da água turva pela sombra da noite e pela areia.
Repito o modus operandi mais um par de vezes. Brado pelo nome dela, respiro fundo e submerjo-me no mar de novo, inspecionando-o com detido detalhe. Por fim, encontro-a e arrasto o seu corpo seminu para fora da água.
Chegados à praia, tiro a minha t-shirt e enrolo-a, de forma a que sirva de apoio para a cabeça dela. Dou início ao processo de reanimação e de primeiros-socorros, recapitulando na minha mente todos os passos do curso que recebi ao abrigo dos bombeiros voluntários.
Tento despertá-la, mas não sou bem sucedido. Avanço para a respiração boca a boca, acompanhada pelas compressões no peito dela.
— Não me podes fazer isto, Eva! — suplico, no meio da angústia que começa a tomar-me, ao me consciencializar da alhada em que estarei metido, caso não consiga reanimá-la.
O que irão pensar se descobrirem que Eva morreu afogada, pouco tempo depois de se ter cruzado com o cunhado, um homem que permitiu que o seu desaparecimento se tornasse algo definitivo ao fim de todo este tempo?
Intensifico toda aquela sequência de movimentos, ao mesmo tempo que o meu coração bombeia mais violentamente sangue para a minha cabeça.
— Acorda, Eva! — berro-lhe, convicto de que se lhe exigir com mais veemência ela vai abrir os olhos. — Maldita sejas! — amaldiçou-a em seguida, enquanto no íntimo rezo por ela.
Perco noção do tempo e do espaço, até que ela soluça a água que tem dentro de si. Tomo-a no meu peito, como se fosse uma criança e liberto-me de toda a tensão acumulada no meu corpo, permitindo que as lágrimas deslizem pela minha face.
Eva fita-me por instantes com um olhar mortiço, ausente, distante. Mas não esboça sequer um obrigado, ou qualquer outra palavra. Pouco depois já está de olhos fechados, no que parece um sono dos inocentes.
Tomo-a nos meus braços e trago-a para casa, voltando a deitá-la na minha cama. No final, parece que ela levou a melhor. Acabo por ceder a deixar aquela intrusa ocupar o meu quarto. Ela é a ponta dum novelo que não quero desenrolar. Eva é a ligação a um mundo que optei por esquecer e abandonar.
Por isso, à medida que as horas transcorrem languidamente, não posso deixar de odiá-la! Só me apetece dar-lhe uns valentes safanões e obrigá-la a confessar quais são as suas motivações dúbias!
Passo quase toda a noite em claro, sentado no cadeirão, a observá-la dormir, como se nada tivesse acontecido. Vou alimentando a minha fúria, a minha frustração.
A herança pesada do passado aninha-se nos meus ombros uma vez mais! Toda a minha vida está virada do avesso e a culpada é ela.
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Chegámos às 5.000 leituras e iniciámos a 2a. fase nesta história!
Como celebração e com um enorme agradecimento a todos vocês, espero que gostem da nova capa!
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A Esposa Perfeita
Narrativa generaleTudo o que nasce do fogo, termina em cinzas! Eva é uma esposa troféu, tendo vivido mais de vinte anos rodeada de todos os luxos e comodidades provenientes desse casamento. Ela sempre foi exímia em interpretar o papel que era requerido dela: a mulh...