PNEU FURADO

35 5 4
                                        

Eu amo minha Picape. A Cabine Dupla, com seu motor roncando feito um animal selvagem, é minha verdadeira paixão. Todos os dias, depois do trabalho, com aquele peso de ser juiz em um tribunal, eu me afasto do mundo e me entrego ao silêncio do meu carro. A vida de juiz é boa. Claro, o poder de julgar o destino das pessoas dá uma sensação quase... divina. Eu sou o árbitro da moralidade. Sou o deus da balança.

Mas, acredite, andar de carro é mais interessante. Quando fecho as portas da minha Picape blindada, tudo parece desaparecer. O barulho da cidade some. O calor do dia, o fedor da vida lá fora, tudo fica para trás. Só me resta a estrada e minha máquina. De vez em quando, algumas paisagens passam por mim: prédios cinzentos, pontes enferrujadas, favelas sujas, praias inatingíveis, condomínios com suas cercas altas e vigilância constante. Cada pedaço do caminho é uma pausa no caos.

E aí, é claro, eu volto para casa.

Minha esposa sempre tem algo a dizer. Alguma ladainha sobre as contas, sobre o filho, sobre o cachorro, sobre os vizinhos, sobre o tempo. Qualquer coisa. Ela é irritante, para ser honesto. Sabe, eu sempre soube que o carro era mais meu do que ela. Só não queria admitir.

Naquele dia, depois de mais um expediente exaustivo no tribunal, foi a mesma rotina. Fui de carro para casa, pensando em como seria bom sentar na minha poltrona, jogar a cabeça para trás e fechar os olhos por um momento.

Mas o destino, como sempre, gosta de brincar comigo.

O pneu furou.

No meio da estrada. Fim de tarde, um calor de fritar o cérebro. O asfalto parecia derreter sob os pneus, e, por algum motivo estranho, eu estava às margens de uma favela. E eu sabia que aquilo não estava certo. Não. Não devia estar ali.

— Caralho, mas que merda. Nem sei direito onde estou.

Desci da minha Picape e olhei para o pneu furado com uma raiva que poderia incinerar tudo ao redor. O calor torrava minha pele, meu paletó estava empapado. Aquilo parecia uma piada de mau gosto. Eu, juiz de direito, com um pneu furado no meio de uma rua imunda. Pensei em ligar para um reboque, mas, no fundo, sabia que isso levaria uma eternidade.

E então, eu ouvi.

— Posso ajudar, senhor?

Olhei para o lado e vi um sujeito sujo, barbudo e com a roupa rasgada. O cheiro que ele exalava era um misto de cachaça e suor. Ele parecia uma sombra vagando pelaquelas ruas imundas, o tipo de gente que eu normalmente ignorava sem hesitar. Gentalha. Não passava de mais um zé ninguém.

— Eu gostaria de saber se o senhor conhece algum profissional de rodas que poderia fazer esse trabalho. Preciso da minha Picape em perfeitas condições.

O homem olhou para mim com olhos meio perdidos, mas com uma expressão de quem tinha visto muita coisa já. Ele estendeu a mão, como se fosse um gesto de boa vontade. Eu olhei para ele, e por um momento pensei em dar um passo para trás e dizer que não queria nada com aquele sujeito. Mas ele não parecia ameaçador. Eu estava sem opções, e ele, pelo menos, parecia entender de pneu.

Tirei a chave de roda do porta-malas e entreguei-a para ele, sem dizer uma palavra. Isso era o que eu fazia quando não queria mais olhar para alguém. Peguei o smartphone e mandei uma mensagem para minha esposa, dizendo que me atrasaria. O calor fazia o ar em torno de mim ficar mais denso a cada segundo.

— Pois então, senhor — o homem disse, meio em um murmúrio. — Para sorte do senhor, eu sou esse profissional de que tanto precisa. Já tenho mais de vinte anos de serviço, mas, como o senhor deve imaginar, estou desempregado. A vida me tirou tudo. Casa, mulher, trabalho. Tudo depois de uma causa perdida. Fui condenado, sabe? Mas não ao crime. Fui condenado pela justiça. Eu fui um borracheiro, senhor. Agora sou um zé ninguém.

Aquelas palavras caíram como pedras na minha cabeça. Aquelas palavras me atingiram com uma força inesperada, mas eu não disse nada. Talvez por nojo. Talvez porque fosse um mero reflexo de compaixão, o que ele não merecia.

Fiquei ali, olhando para o telefone, os dedos nervosos e esperando que o homem fizesse seu trabalho. Não me importava. O calor, o cansaço, a vida insuportável. O barulho de uma favela lá atrás parecia uma melodia distante.

E, de repente, ele me olhou de novo. Com aqueles olhos vazios e um sorriso torto.

— Sabe, senhor... gente como o senhor nunca presta atenção na gente como eu. Mas nós nunca esquecemos. Não. Nunca esquecemos o rosto de gente como você. Senhor juiz. Luiz Afonso Pimenta.

Meu coração deu um salto.

Era como se o ar tivesse se tornado mais espesso. Eu não entendi. Eu nunca tinha visto aquele rosto. E aquele nome... Não, eu nunca tinha ouvido. Não sabia de onde vinha aquilo, mas meu estômago se revirou.

De repente, ele estava ali. Com algo na mão. Algo que parecia uma faca enferrujada. Ele deu um passo à frente, olhos fixos em mim.

— Filho da puta — ele disse, com a voz rosnando.

A raiva no meu peito tomou conta de tudo. Meus reflexos, de repente, estavam mais rápidos que a lógica. Eu desviei com facilidade do golpe. Não sei como, mas consegui. Sempre me imaginei forte, mas nunca pensei que fosse rápido assim.

Pulei para trás e puxei minha .9mm, a arma que nunca deixava de estar ao meu alcance. Eu estava mais calmo agora. A raiva era fria, calculista. Não pensei. Não hesitei.

O primeiro tiro foi certeiro. No peito dele. Ele caiu de joelhos, o sangue explodiu para fora como uma fonte escarlate.

— Filho da puta... — eu murmurei.

E descarreguei o resto do pente, um disparo após o outro. Sangue foi espirrando por todo lado. Eu não me importava. Eu não pensava. Só apertava o gatilho.

Outros começaram a aparecer. Outros homens sujos. Outros vultos que se aproximaram de mim com a mesma fúria. Olhos vazios, rostos retorcidos pela miséria.

Mas eu já estava dentro do carro. Acelerei. Só acelerei.

A Picape rugiu enquanto eu disparava pelo asfalto, o som do motor abafando tudo atrás de mim. Eu não olhei para trás. Não queria. Não podia.

Aquela figura, o homem com a faca, o nome que eu nunca tinha ouvido... Algo me dizia que ele sabia mais do que deveria.

E da próxima vez... Eu acho que vou mudar minha rota.

SOMBRAS DA NOITEOnde histórias criam vida. Descubra agora