SABONETE VERMELHO

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Caetano esperou até ouvir o som da água correndo no banheiro. Sua mãe estava no banho. Era agora ou nunca. Ele estava de castigo, proibido de sair de casa, mas isso nunca funcionou com ele. Menino sapeca é assim, sempre um passo à frente. Sempre arranjando um jeito de escapar.

Ele vestiu uma camiseta vermelha, aquela que ele mais gostava, com a estampa do super-herói. Por um momento, ficou parado, olhando para a janela. A rua estava vazia e escura. O que mais ele podia querer agora? O futebol. Os amigos estavam jogando na rua de cima, mas não queria dar a volta e passar pelos olhos de sua mãe. Então, resolveu pegar a trilha.

A trilha era mais curta. Cortava o terreno baldio atrás da casa. Aquele mato fechado, o colonião alto, que parecia uma selva. Caetano sabia que não era seguro. Sabia que seus amigos diziam que era melhor passar por fora, dar a volta pela avenida principal. Mas ele não queria perder o jogo. E o relógio estava contra ele. Já estava tarde, a noite chegando e o cheiro da vitória ainda no ar.

Ele se aproximou da entrada da trilha. O vento parecia mais gelado do que o normal, mas Caetano ignorou. Os gritos dos amigos, os sons da bola quicando, vinham de lá, da outra rua. Ele só precisava atravessar aquele matagal e chegaria lá. Era só dar um passo, dois, três... a certeza de que conseguiria era mais forte do que o medo. Até ouvir o som.

O estalo de galhos secos. Passos lentos.

Quando Caetano olhou para frente, congelou. No meio do caminho, entre as sombras da vegetação, estava um velho. Ele estava de pé, imóvel, com um saco enorme nas costas. Um saco tão grande que parecia que poderia engolir o mundo. O velho olhava para ele com uma calma sinistra, um olhar que parecia não enxergar o menino, mas a própria escuridão ao redor. Como se ele fosse parte da noite, parte daquilo tudo. A presença dele parecia invadir o espaço, como uma fumaça espessa.

O velho estendeu as mãos. Entre seus dedos, um pirulito. O açúcar brilhava na luz distante, como um farol.

— Venha cá, Caetano — disse o velho, com uma voz rouca, como se tivesse engolido toda a poeira do mundo. — Este aqui é para você. Lá em casa tem mais, e você pode comer quantos doces quiser, ou aguentar.

Caetano deu um passo para trás, instintivamente. O cheiro do velho era pesado, como um musgo úmido, um perfume de algo que há muito tempo estava esquecido. O medo começou a engolir sua garganta.

— Como sabe meu nome? — Caetano perguntou, a voz falhando. Não havia razão para ele saber, não havia razão alguma. Ele deveria ter corrido para casa. Fechado a porta, trancado a janela, feito qualquer coisa. Mas ele estava paralisado.

O velho sorriu. Mas não foi um sorriso amigável. Foi um sorriso vazio, sem vida, sem calor. Apenas um esticar de pele, dentes amarelados e gengivas ressecadas.

— Eu conheço o nome de todas as crianças levadas, malcriadas e estúpidas como você, Caetano. Você não deveria ter escapado do castigo. Agora vai aprender da pior forma. — A voz do velho desceu como uma faca afiada.

O medo apertou o peito de Caetano. Ele olhou ao redor. O mato estava denso, as árvores pareciam se aproximar, se fechar. O velho estava ali, à sua frente, com aquele saco esquisito nas costas. Mas, mais que isso, o velho estava dentro de sua cabeça agora, escavando seus pensamentos, plantando o terror. O menino deu um passo para trás, outro, e então olhou para os lados. Como uma prisão. Não havia saída.

O velho avançou, sua mão se aproximando do rosto de Caetano. Ele podia sentir o peso daquilo tudo, o peso do olhar do homem, e algo muito mais pesado que o medo. Algo que ele não conseguia explicar. A mão do velho tocou sua bochecha, com uma suavidade que mais parecia uma ameaça.

— Deixe-me ir, por favor — Caetano disse, tentando engolir o choro. — Eu prometo ser bom, eu prometo. Por favor, me deixe ir. Eu vou ficar em casa, vou fazer tudo o que minha mãe pedir. Eu prometo!

Mas o velho não respondeu. Só sorriu. O sorriso parecia se expandir. A boca dele cresceu, de uma maneira impossível, como se estivesse rasgando a própria face para abrir mais espaço para aquele sorriso monstruoso. E então, com um movimento tão rápido que Caetano nem percebeu, o velho abriu o saco.

O saco não era comum. Era mais do que grande, era... opressor. Ele sentiu uma pressão, como se o ar estivesse sendo sugado para dentro dele. Ele tentou gritar, mas a garganta estava fechada, seca, como se tivesse engolido o próprio medo.

O velho se aproximou, e em um movimento rápido, jogou o saco sobre Caetano. A escuridão envolveu o menino. Ele sentiu seu corpo encolher, sendo puxado para dentro daquele saco sem fundo. Mas não havia dor. Só um vazio imenso. A sensação de desaparecer. Caetano olhou uma última vez para fora do saco, para o mato ao redor, mas tudo o que viu foi o olhar do velho, observando-o.

— Agora é tarde, meu pequeno Caetano — disse o velho, sua voz fria como o aço. — Espero que goste de sabonetes...

A luz se apagou.

Alguns dias depois, a mãe de Caetano estava na cozinha, tentando limpar as lágrimas que nunca cessavam. O vazio do seu filho desaparecido parecia um buraco dentro dela, maior do que qualquer dor poderia preencher. Ela ouviu a campainha, uma batida arrastada, como se o próprio tempo estivesse se arrastando junto.

Quando abriu a porta, um homem estava lá. O velho. O saco nas costas.

— Posso ajudar, senhora? — ele perguntou, com uma voz que fazia a pele da mulher arrepiar.

Ele estendeu o saco, e dentro, a mulher viu. Sabonetes. Sabonetes de diversos tipos. E um em especial, que chamou sua atenção. Um sabonete vermelho. Com uma inscrição. Um nome.

Caetano.

SOMBRAS DA NOITEOnde histórias criam vida. Descubra agora