Vicente sempre teve uma maneira peculiar de ver o mundo. Onde outros viam beleza ou inocência, ele via algo repulsivo, algo que precisava ser extinto. E entre todas as criaturas que povoavam as ruas do bairro, os gatos eram, de longe, os mais detestáveis.
Ele os odiava. Desde o dia em que viu aquela calopsita mutilada, com as penas esmagadas entre os dentes afiados de um gato que nem sequer hesitou antes de atacar. Ele estava na varanda, trocando a água e a ração da ave, e quando virou de volta, a calopsita já era uma sombra sem vida, com uma parte de sua cauda ainda pendendo da boca do felino. Vicente sentiu uma raiva tão pura, tão primal, que o mundo ao seu redor ficou em silêncio. Ele não hesitou. Pegou o espeto de churrasco de seu pai, que estava apoiado na parede, e perfurou o corpo do gato até não poder mais ouvir os gritos. O animal se debateu, mas os olhos de Vicente estavam vazios, como se já tivesse visto o fim de tudo antes mesmo de chegar àquela casa.
Depois, jogou o corpo do gato no esgoto, como se fosse o descarte de algo inútil. Não sentiu remorso, nem um pouco. Apenas uma satisfação abafada, como se tivesse cumprido uma missão. E foi isso. Depois disso, os gatos eram apenas uma praga que ele se sentia no dever de erradicar.
Ele se acostumou com a caça. Nas manhãs preguiçosas, quando o sol mal começava a tocar as ruas escuras do bairro, Vicente saía de casa, armado com sua isca — pedaços de carne que ele sabia que os felinos não resistiam. Era simples, como um jogo. Eles sempre chegavam até ele. Pobres animais, confiando naquele rosto de menino bonito, com suas mãos trêmulas de falsa gentileza. Mas não havia nada gentil ali. Nada de humano.
O terraço de Vicente ficava no topo de uma casa velha, quatro andares acima do nível da rua, e era de onde ele realizava seus atos. Ele gostava da altura. Gostava de observar, do alto, a pequena criatura indefesa que ele escolhia como alvo. O impacto de um gato caindo do terraço sempre lhe dava uma sensação peculiar. Como se o mundo inteiro fosse um tabuleiro de xadrez, e ele fosse o único jogador, o único que entendia as regras. Seus pais nunca desconfiaram de nada. Ele era um bom garoto, depois de tudo. Um menino que cantava nos cultos, que fazia suas orações e respeitava os mais velhos. Vicente era tudo o que eles queriam que fosse.
Mas os gatos — ah, os gatos — Vicente não podia deixar de exterminá-los. Cada um deles era um lembrete daquela calopsita. Cada um deles, uma vingança. E ele os pegava com mãos frias, como quem lida com uma pestilência.
Naquela tarde, ele encontrou o que parecia ser um gato de estimação, um animal gordo e bem cuidado, com pelagem negra como carvão e um rosto dividido — metade preto, metade branco. Os olhos, verdes como esmeraldas, eram o que Vicente mais odiava. O brilho de desconfiança, a forma como o gato o encarava, como se soubesse o que viria. Mas nada disso importava. Ele nunca hesitava.
– Cá, bichano, cá seu gato sujo – ele sussurrou, a voz baixa e cortante. O gato se aproximou com cautela, atraído pela isca de carne crua que Vicente segurava na mão. Mas, quando chegou perto o suficiente, Vicente agarrou o animal com uma rapidez de predador. O gato tentou se debater, mas era tarde demais. O garoto o segurou com força, ignorando os arranhões que cortavam sua pele.
Com um sorriso satisfeito, Vicente subiu as escadas até o terraço. Colocou o gato na borda, apreciando o movimento da cauda, o pânico nos olhos do animal. Ele sorriu de novo. Era a última coisa que aquele gato veria.
— Adeus, seu demônio – disse Vicente, empurrando o animal para o vazio.
O gato gritou no ar, mas o som foi abafado pela distância. Vicente assistiu até que o corpo se partisse contra o asfalto abaixo. O impacto fez com que um pequeno pedaço de carne voasse para o lado. Vicente não se importou. Ele estava satisfeito. Mais um capítulo da sua pequena guerra.
Depois disso, ele desceu as escadas com um passo tranquilo, foi ao culto com seus pais, e os irmãos na igreja o elogiaram por sua voz, pelo louvor que cantou com tanta devoção. Seus pais estavam orgulhosos de seu filho, sentiam a mão do Senhor guiando suas ações. Eles não sabiam o que Vicente havia feito. Eles não sabiam o que ele fazia nas sombras da casa.
Naquela noite, quando a casa estava em silêncio, Vicente foi para o seu quarto, pensando em quanto a vida era simples e fácil para ele. Mas então algo aconteceu. Ele acordou no meio da noite, sufocado, com uma sensação estranha sobre o peito. Era um peso. Um peso imenso, escuro e peludo, que o impedia de respirar. Ele tentou se mover, mas não conseguia. Sua mente estava turva, cheia de imagens confusas. E no meio da escuridão, algo piscou. Os olhos do gato. Os mesmos olhos verdes, agora brilhando com um ódio impossível, um ódio que parecia vir de um lugar muito mais profundo do que qualquer coisa humana.
Vicente tentou gritar, mas a pressão sobre seu peito aumentou, e ele não podia mais respirar. Os olhos verdes o encaravam, agora com um sorriso de vingança.
— Não... não... – Ele tentou se mover, mas a escuridão o engolfou.
E foi assim que ele morreu. Com os olhos verdes do gato fitando-o, e um peso insuportável esmagando seu peito, até que ele desapareceu.
Quando os pais de Vicente acordaram, encontraram seu filho imóvel na cama, com um olhar vazio e um sorriso estranho nos lábios. Não havia marcas, não havia feridas, mas o que restou dele não era mais o mesmo.
O gato negro, com o rosto dividido, já não estava mais na rua.
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SOMBRAS DA NOITE
HorrorEste livro de contos curtos de terror apresenta uma coleção de histórias arrepiantes e sobrenaturais. Em um dos contos, um menino descobre segredos obscuros sobre sua família ao se aventurar pelo porão proibido da casa de sua avó, onde encontra uma...