Maria Gorda acordou com uma dor lancinante no braço esquerdo, e antes que pudesse entender o que estava acontecendo, o cão a mordeu de novo. A mordida foi profunda, como se ele quisesse arrancar sua carne em pedaços, mas ela estava tonta, desorientada, com o estômago roncando e o cérebro carregado de uma névoa pesada. O vira-lata era magro, esquelético, com a pele puxada até os ossos, uma verdadeira caveira ambulante, mas seus dentes... Ah, seus dentes eram como lâminas afiadas, prontas para cortar o que quer que estivesse ao seu alcance. Ele não se importava com o sangue que escorria da sua mão, ou com as feridas abertas em sua pele. O que importava, ali, naquela madrugada sem nome, era a comida.
Maria Gorda estava com a marmita firme nos braços, a última coisa que ainda tinha. Ela não deixaria o cão roubá-la. Não dessa vez.
Ela xingava o animal, amaldiçoando-o em voz baixa, mas ele não se importava. Ele mordia e rasgava, puxava e se enfurecia como se aquela comida fosse sua única razão de existir.
— Vai embora, seu diabo! — Ela gritou, mas sua voz soou fraca e desafinada, um sussurro no vento frio da madrugada.
Os dentes do cão encontraram a carne de Maria Gorda com força, e ela sentiu como se algo se partisse dentro de si. Um estalo no ar. Seus braços estavam estilhaçados, sangue quente escorrendo pela sua barriga enorme, pingando no asfalto, criando poças vermelhas sob o céu sem estrelas.
Ela olhou para os lados. Não havia ninguém. As ruas estavam desertas, não havia carros, nem coletivos passando. Apenas o silêncio de uma cidade que, àquela hora, preferia fingir que ela não existia.
Maria Gorda sabia o que era a solidão. Ela conhecia cada pedaço dela, como se fosse uma velha amiga que se recusava a sair da sua vida. Ela morava nas ruas, e os pontos de ônibus eram sua casa. Os bancos sujos e enferrujados eram seus travesseiros. A única coisa que ainda a fazia sentir alguma coisa era a marmita que ela havia encontrado jogada em um banco, nas imediações de um jardim onde alguns peões trabalhavam na manutenção do esgoto. Eles tinham almoçado ali, a marmita ainda morna, e um dos homens a deixara para trás, esquecido, sem se importar com ela. Não estava com fome. Talvez tivesse se cansado da vida.
Maria Gorda, no entanto, não era tola. Não desperdiçava comida. Ela pegou a marmita com mãos trêmulas e, antes de comer, ficou olhando para o prato por um tempo, como se estivesse se preparando para algo grandioso. Uma refeição para relembrar. Para existir, se é que ela ainda existia. Ela não era mais Maria Gorda, a mulher gorda, a mulher feia, a mulher invisível. Não. Ela já tinha sido alguém.
Quando comia, suas pernas inchadas e suas roupas sujas se perdiam no tempo. Ela se lembrava de quando dançava, quando era mais jovem e os homens olhavam para ela como se ela fosse uma estrela. Maria Gorda fora uma bailarina, mas ninguém mais se lembrava disso. Não Maria Gorda, a mulher sem rosto, a mulher sem nome.
Ela havia comido a marmita até que a fome tivesse acalmado um pouco. Mas, no final, adormeceu com ela nos braços, na calçada, abraçada ao que restava.
E agora, o cão, faminto e impiedoso, a atacava.
Ele estava com fome também, assim como ela. Mas a fome não era apenas física. Era uma fome que dilacerava o ser por dentro, uma fome de algo que nunca poderia ser saciado. Eles estavam ali, Maria Gorda e o cão, lutando por aquele resto de vida. O que restava de cada um.
O sangue escorria e ela não sentia dor. Talvez fosse o cansaço, ou o fato de que ela já não se importava com o que acontecia. A vista de Maria Gorda começava a se turvar, e a sua mente, que estava sempre à beira da loucura, começava a escorregar para a escuridão. Ela já não sabia mais onde terminava e onde começava. As memórias fugiam dela, como fantasmas que sussurravam no canto da mente, mas sempre se afastavam quando ela tentava agarrá-los. Sua cabeça doía. O zumbido dentro dela aumentava, rasgava a alma.
— Quem sou eu? — Ela sussurrou, mais para si mesma do que para o mundo ao redor.
Ela foi uma bailarina, isso ela sabia. Ela dançou em palcos iluminados, todos aplaudindo. Eles a adoravam, achavam-na uma mulher deslumbrante. Mas esse tempo já tinha ido. Agora, ela estava ali, invisível, apodrecendo na calçada enquanto o cão roía seus ossos e a carne podre.
Foi quando Maria Gorda teve o último pensamento claro, antes que tudo se apagasse.
Alguém me espera.
Ela tentou se lembrar de quem, mas sua memória era uma névoa. Ninguém ali, naquela cidade, a esperava. Aquelas pessoas que passavam apressadas, ignorando seu olhar vazio. Aquelas pessoas que davam a volta quando viam seu corpo inchado e fedido. Ninguém a amava. Ninguém se importava. Mas ela lembrou de uma coisa, por um segundo — um nome, uma voz doce, um rosto jovem, uma casa com flores na varanda.
Mas quando o cão continuou a devorá-la, sua mente se desfez de tudo. E no último suspiro, Maria Gorda entendeu uma coisa que a fizera rir baixinho, mesmo com o sangue escorrendo pela boca.
Eu não sou ninguém.
Ela havia sido alguém, mas agora ela já não importava mais. O cão a devorava, um pedaço por vez, e Maria Gorda desapareceu.
E lá, naquela praça vazia, não havia aplausos. Apenas o silêncio de um mundo que já não lembrava mais dela.

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SOMBRAS DA NOITE
HorrorEste livro de contos curtos de terror apresenta uma coleção de histórias arrepiantes e sobrenaturais. Em um dos contos, um menino descobre segredos obscuros sobre sua família ao se aventurar pelo porão proibido da casa de sua avó, onde encontra uma...