O MÚRMURIO DA SERRA

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A noite na Serra dos Óculos estava silenciosa, mas não uma calma tranquila. O silêncio parecia mais denso, como se a floresta, com suas árvores antigas e retorcidas, estivesse segurando a respiração, aguardando algo que nunca chegaria. O calor abafado do fim de tarde ainda pairava no ar, embora o vento, que começava a se levantar, sugerisse que a tempestade não tardaria.

Na pequena aldeia de São José do Sobrado, não havia muitos moradores. A maioria trabalhava nas plantações de café e no pequeno comércio, mas uma coisa era certa: a verdadeira força da aldeia não estava nas mãos dos homens, mas nos sussurros daquelas montanhas. Durante anos, histórias circulavam, contadas à sombra das árvores e ao redor das fogueiras. De seres estranhos que viviam nas cavernas, de gritos distantes ou de sombras que se moviam por entre as rochas. Histórias que os mais velhos diziam com um sorriso de canto de boca, como quem sabia que não valia a pena perguntar mais.

Mas para a família de Marcos, aquelas histórias estavam prestes a se tornar reais.

Marcos era um homem simples, de mãos calejadas e rosto suado, que passava a maior parte do tempo cuidando da terra. Sua esposa, Isabel, era mais quieta, com olhos que pareciam enxergar algo além do que o mundo mostrava. Ela sempre dizia que os "olhos do mato" nunca falhavam, que a natureza tinha um jeito próprio de se comunicar. Marcos ignorava suas palavras, mas nunca as desconsiderava totalmente.

Naquela noite, após um dia de trabalho no campo, Marcos entrou em casa e encontrou Isabel parada à janela, olhando fixamente para a montanha que se erguia na distância. A escuridão começava a engolir tudo, exceto o contorno da serra, que parecia brilhar de uma maneira estranha, como se algo o estivesse iluminando de dentro.

— O que foi, Isabel? — perguntou ele, encostando-se na porta.

Ela se virou lentamente, os olhos estavam mais fundos do que ele se lembrava. Havia algo de inquietante neles.

— Eles estão vindo, Marcos. O Murmúrio da Serra está acordando. — Sua voz era baixa, como se estivesse tentando não ser ouvida.

— Está louca? — Marcos riu, mas sua risada parecia mais nervosa do que ele gostaria de admitir. — Só é uma tempestade, Isabel.

Ela negou com a cabeça, os lábios tremendo ligeiramente. Um arrepio percorreu sua espinha.

— Não é só a tempestade. Há algo mais. Eles estão começando a se mover. Eles... não gostam de ser incomodados.

Marcos olhou para a montanha novamente. O céu estava tingido de vermelho e roxo, uma cor que ele nunca vira antes, como se a própria terra estivesse sangrando. Ele franziu a testa e afastou a preocupação que começava a crescer no peito. Era só uma tempestade, nada mais.

— Vamos dormir. Amanhã, a gente cuida disso. — Ele se aproximou e colocou a mão sobre o ombro dela, tentando tranqüilizar.

Mas Isabel não parecia nem um pouco convencida. Ela olhou para ele com uma intensidade que o fez sentir um calafrio na espinha.

— Eles sabem que você está aqui, Marcos. Eles estão vendo você. Eles estão esperando.

Marcos puxou a esposa para dentro da casa e trancou a porta. A tempestade não demorou a chegar, como uma fera faminta, quebrando o silêncio da noite com o estrondo dos trovões e o brilho das relâmpagos. No entanto, o mais estranho era o que ele ouviu por trás do som da chuva. Um som que não se encaixava, como se alguém estivesse caminhando entre as árvores, perto demais para ser ignorado.

Aquela sensação de ser observado, a sombra que se movia entre as árvores, começou a apertar o peito de Marcos. Ele se levantou e caminhou até a janela. O vento uivava agora, empurrando as gotas de chuva contra o vidro.

E então ele viu.

Nos limites da floresta, entre as árvores tortuosas, uma figura apareceu, alta e magra, com os braços alongados, quase desproporcionais. Seus olhos brilhavam, mas não com a luz do relâmpago, e sim com uma cor esverdeada, sinistra. Marcos ficou paralisado, não sabendo se deveria gritar ou correr. A figura não parecia humana, mas algo... mais antigo. Algo que existia ali muito antes de qualquer ser humano chegar.

Ele olhou para Isabel, que estava em pé atrás dele, os olhos fixos na figura. Seus lábios estavam murmurando palavras que ele não conseguia entender, uma língua que parecia feita de vento e folhas secas.

— Eles não vão parar. Eles querem o que é deles, Marcos. O que você fez... o que você trouxe.

Marcos sentiu o medo crescer em seu peito, uma sensação gélida e sufocante. Ele deu um passo para trás, sentindo que a realidade começava a se distorcer ao seu redor, como se a casa fosse só uma casca fina, prestes a ser engolida pela montanha. Ele tentou falar, mas a voz não saiu. O ar ficou pesado, e o som da tempestade parecia se distorcer, tornando-se um eco distante, abafado.

A figura nas árvores deu um passo à frente, e com ele, o som do Murmúrio da Serra cresceu, como se as montanhas inteiras começassem a cantar uma canção velha, cheia de dor e vingança.

Marcos queria correr, mas o medo o paralisava. Ele não sabia o que fazer, nem para onde ir.

— O que querem de nós? — sussurrou ele, quase sem voz.

Isabel respondeu com uma suavidade que mais parecia um sussurro vindo de outro mundo:

— Eles querem que paguemos pela nossa ousadia. Eles querem que você pague pelo que tirou deles, Marcos.

E antes que ele pudesse entender o que ela queria dizer, o Murmúrio se intensificou, como um grito abafado de algo que estava acordando das profundezas da terra, algo que nunca deveria ter sido despertado.

Então, tudo escureceu.

Naquela noite, a Serra dos Óculos reclamou sua dívida. E os ecos de sua voz ecoaram para sempre no coração daquelas montanhas.

SOMBRAS DA NOITEOnde histórias criam vida. Descubra agora