O vírus não teve piedade. Devastou o planeta, um país de cada vez, até que não restou mais nada. De alguma forma, fui um dos últimos a saber. Ou talvez só fosse o último a me importar. A princípio, ainda havia notícias, gritos desesperados de médicos, políticos e técnicos, mas tudo desapareceu em meio ao caos. O colapso nos sistemas de saúde, a quebra da ordem, a fome, a miséria. Eu sabia o que estava acontecendo, mas o que mais poderia fazer? Eu tinha dinheiro, o suficiente para sobreviver, pelo menos por um bom tempo.
Terminei meu banker a tempo, com recursos de sobra, e estoquei o que precisávamos — comida, medicamentos, tudo. Mas nada disso poderia trazer minha esposa de volta.
Roberta... Era o único pensamento que me torturava durante os dias intermináveis de silêncio e solidão. Minha esposa e minhas duas filhas pequenas, todas intubadas, respirando pela última vez enquanto eu observava, impotente. Depois disso, já não havia mais nada para fazer.
A humanidade foi sucumbindo aos poucos, até que algo maior tomou conta. Bombas de nêutron. Uma solução prática. A população se foi, a pobreza se extinguiu, o mundo foi resetado. Só restou eu. E Roberta. Mas, para ela, eu não podia fazer nada. Apenas esperar. E esperar. E esperar.
Passei dez anos dentro do meu bunker, com a comida enlatada e os pacotes de cartas que me fizeram companhia. Joguei paciência até as cartas ficarem gastas e me convenci de que a solidão era a minha única amiga. Esperava que, algum dia, o mundo fosse mais hospitaleiro para quem ainda respirava. Ouvia o rádio apenas para saber dos efeitos da radiação, e esperava pelo dia em que eu pudesse sair. Respirei o ar envenenado da radiação enquanto sentia a febre me consumir, mas sobrevivi. Sempre sobrevivi.
Quando finalmente as doses de radiação cessaram, os efeitos começaram a desaparecer, e eu saí. A luz do dia estava mais fraca, mas a sensação de liberdade foi avassaladora. O mundo estava irreconhecível. Ruínas, escombros, mas o cheiro... ah, o cheiro do ar puro depois de tanto tempo.
Mas havia algo que eu precisava fazer. Alguém que eu precisava encontrar.
Ela ainda estava lá. Eu sabia.
Roberta.
Ela estava em algum lugar, perdida nesse novo mundo. Eu a procurava e a chamava, mesmo sabendo que, se não fosse ela, não havia mais razão para continuar. Eu não queria viver num mundo sem ela. Não sem sua risada. Não sem os seus cachos loiros.
Por fim, depois de semanas de buscas desesperadas, encontrei-a. Ela estava em uma praça, sob a sombra de um edifício desmoronado, com uma expressão suave e tranquila, como se o mundo nunca tivesse mudado.
Ela continuava linda como sempre fora.
– Pensei que nunca mais iria ver esse seu sorriso lindo e tocar nestes cachos loiros – disse, com a voz rouca, após o longo abraço.
Ela sorriu, mais uma vez, aqueles malditos dentes brancos que me faziam perder a cabeça, e então falou, como se a morte nunca tivesse acontecido, como se o fim do mundo fosse uma farsa.
– Qual a primeira coisa que deseja fazer, minha querida? – perguntei, quase sem acreditar naquilo.
Ela riu com aquelas covinhas, e uma onda de nostalgia me invadiu. Eu já tinha imaginado mil vezes como seria aquele momento. Eu a teria de volta. E nada mais importava. O resto, o que sobrou do mundo, pouco me importava.
– Vamos a um restaurante bem chique que é a última novidade do Novo Mundo. Quero comer até minha barriga explodir. Comida de verdade, entende, meu amor?
Eu a olhei, sem palavras, sentindo uma onda de desejo e dor misturados.
Eu também queria comer de verdade. Eu queria esquecer os anos de ração, de comida enlatada. E, mais que tudo, queria voltar ao que era antes. Aqueles tempos em que nada era importante a não ser o agora.
– E depois? – perguntei, já antecipando a alegria que estava por vir.
Ela não hesitou. Sorriu com malícia.
– Vamos tirar o atraso e relembrar os velhos tempos de amantes. E sua esposa, como está aquela songa monga?
Eu não pude deixar de sorrir, embora o sorriso fosse triste, amargo. A esposa que eu perdera. As filhas que não veria mais.
– Morreu. Meus filhos também – respondi, sem mais nem menos.
Ela riu, e aquela risada ecoou pela praça deserta, um som vazio, mas doce, como se nada no mundo fosse mais importante.
A gente estava vivo. E, em algum lugar, isso significava algo.
Fomos até o restaurante. O tal restaurante chique do Novo Mundo, onde as coisas eram diferentes agora. Onde a comida era servida como um presente. Comemos até não aguentarmos mais, e depois saímos, com os estômagos pesados e os corações mais leves.
O mundo havia mudado. Mas, naquele momento, nada importava.
Porque, neste mundo, só os fortes sobrevivem. E nós éramos os mais fortes.
Ou, pelo menos, era o que eu queria acreditar.
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SOMBRAS DA NOITE
TerrorEste livro de contos curtos de terror apresenta uma coleção de histórias arrepiantes e sobrenaturais. Em um dos contos, um menino descobre segredos obscuros sobre sua família ao se aventurar pelo porão proibido da casa de sua avó, onde encontra uma...