O ÚLTIMO ANO NOVO

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Naquela véspera de Ano Novo, o calor abafado de São Paulo se arrastava pelas ruas desertas, como se a cidade estivesse exausta da longa jornada de 365 dias. As luzes dos prédios piscavam em amarelo e azul, como estrelas perdidas no vazio de uma noite sem lua. As pessoas se preparavam para comemorar, mas uma sensação estranha tomava conta do ar. Como se algo estivesse prestes a acontecer, algo inevitável.

Na Vila Maria, uma favela esquecida entre a ponte da Casa Verde e o viaduto do Jabaquara, os gritos de crianças se misturavam ao som das panelas e fogos de artifício. Era uma tradição. Mas aquele ano parecia diferente. A agitação do povo estava mais tensa, como se uma presença invisível estivesse vigiando cada movimento.

Márcio, um rapaz de 23 anos, estava sentado na varanda da casa onde morava com a mãe. A fumaça do churrasco no quintal subia pelo ar quente, e ele, de camiseta suada, olhava para o horizonte, tentando entender o que o incomodava. O relógio marcava quase meia-noite. O som das bombas ecoava à distância, mas não o tocava. Ele estava distante, como se já soubesse que nada daquelas celebrações importava. Um pressentimento pesado o dominava.

A mãe, Dona Glória, apareceu na porta da sala, com o rosto iluminado pela luz do fogão a gás. Seu sorriso forçado não disfarçava o cansaço nas rugas profundas. Ela olhou para o filho, como quem tenta enxergar através dele.

— Vai ficar aí, meu filho? Não vai celebrar com a gente? — perguntou, já sabendo a resposta.

Márcio não respondeu. Seus olhos estavam fixos no céu. O farol de um carro passou rapidamente na rua estreita e as luzes brilharam no vidro de um prédio distante, mas isso não fez diferença. Algo estava prestes a acontecer, e ele sentia isso com a força de uma tempestade.

— Eu sei o que você está pensando... — disse ela, com um tom de quem já havia previsto a resposta. — Mas tem que ser, filho. Esse é o nosso momento. O ano vai virar, as coisas vão mudar.

Márcio levantou-se lentamente e olhou para a mãe.

— Você acredita nisso, mãe? Que o ano vai mudar só porque as pessoas estouram fogos e fazem promessas vazias? — Ele deu um riso baixo, quase amargo.

Dona Glória não soube o que dizer. Ela respirou fundo e olhou para o céu, como se estivesse buscando uma resposta entre as estrelas que começavam a surgir.

— Eu sei... — ela começou, como se recitasse algo que já tinha ouvido antes, mas nunca realmente acreditado. — Eu sei, filho. Mas é só uma forma de dar esperança. A gente precisa disso. Não temos mais nada, Márcio.

O rapaz olhou para o céu e, por um instante, acreditou que a noite parecia mais escura do que deveria. O calor se intensificava, como se o próprio ar estivesse carregado de algo que não se podia ver, mas que podia ser sentido. Ele sentiu um calafrio, um arrepio que lhe percorreu a espinha, como se estivesse sendo observado. De repente, ele se lembrou de algo que ouvira quando era mais jovem.

Antigos moradores da Vila Maria falavam sobre uma lenda: uma presença maligna que surgia na noite de Ano Novo, aproveitando-se da ansiedade das pessoas para começar um novo ciclo. Diziam que esse ser se alimentava da esperança dos que não acreditavam em um futuro melhor. Muitos achavam que era apenas superstição, mas naquela noite, Márcio não tinha tanta certeza.

— Eu vou dar uma volta, mãe — disse, sem olhar para ela. — Não aguento mais esse barulho.

Antes que Dona Glória pudesse protestar, ele já estava na rua, o peso da decisão estampado em seu rosto. As ruas estavam vazias, exceto por algumas poucas pessoas apressadas, indo e vindo, cada uma com sua própria esperança, mas sem saber o que as aguardava.

O som dos fogos de artifício parecia agora mais distante, mas também mais sinistro. Márcio andou por algumas ruas, atravessou a ponte e entrou nas vielas escuras onde o cheiro de carne assada ainda se misturava ao da fumaça das fogueiras improvisadas. Ele sentia algo. Algo pesado no ar. Algo que não se via, mas estava presente, oprimindo o peito, como se algo estivesse prestes a acontecer. E então ele ouviu.

Um grito. Curto, mas desesperado. E depois, outro. E mais outro. Todos pareciam vir de dentro da favela, mas ninguém parecia se mexer. O som dos fogos continuava, mas agora ele soava distante, abafado. O pânico se espalhava rapidamente entre os poucos que estavam nas ruas.

Ele correu de volta, sem saber por quê, mas sabendo que precisava. Quando entrou em casa, encontrou Dona Glória, olhando fixamente para a televisão, o semblante pálido. O que ela via não era bom.

— Mãe! O que está acontecendo? — Márcio perguntou, desesperado.

Dona Glória não respondeu. Seu olhar estava fixo, como se algo a tivesse paralisado. Na tela da televisão, um noticiário mostrava cenas de pessoas desaparecendo das ruas, como se tivessem sido engolidas pela escuridão. As imagens eram inconstantes, como se alguém estivesse manipulando o sinal. E, em algum momento, o som de algo grande, algo imenso, ecoou pela cidade.

E naquele momento, o relógio da sala deu meia-noite. O ano havia virado.

Márcio olhou para o céu através da janela e viu as luzes se apagando, uma a uma. O ano novo não trouxe o que as pessoas esperavam. Não trouxe mudança, nem esperança. Apenas uma escuridão crescente que tomava conta de tudo.

E o pior era que ele sabia: aquele não era o fim. Apenas o começo.

— Não há mais volta — disse Dona Glória, sua voz agora distante. Ela olhou para o filho, com um olhar que ele nunca havia visto antes, como se ela estivesse dizendo adeus.

Márcio se virou e viu a sombra se formar atrás dele, nas paredes da sala. Era grande, muito grande. E ele sabia que não havia como escapar.

— Feliz Ano Novo, filho.

SOMBRAS DA NOITEOnde histórias criam vida. Descubra agora