A pequena cidade de Vale da Serra, no interior de Minas Gerais, parecia perdida no tempo. As ruas de paralelepípedos, as casas antigas e os rostos enigmáticos dos moradores davam a impressão de que o relógio ali funcionava de maneira diferente, como se a realidade fosse distorcida pela memória ancestral, por algo que se escondia nas profundezas das montanhas que rodeavam o vilarejo.
Foi em uma noite quente de verão que Marcos, um jovem jornalista de Belo Horizonte, chegou à cidade. Ele ouvira falar de um antigo folclore local, uma história que ninguém na cidade queria contar, mas que sempre surgia quando alguém se embriagava ou se sentia à vontade demais. Os mais velhos falavam sobre "a coisa", algo que morava na serra e que tomava conta das pessoas de tempos em tempos. E Marcos, movido pela curiosidade e pela ânsia de escrever um artigo sobre mistérios populares, decidiu investigar.
A primeira noite foi tranquila, mas na segunda, enquanto caminhava pelas trilhas que subiam as montanhas, ouviu um som estranho — um canto grave, como o murmúrio de uma velha canção esquecida. Não sabia se estava sendo vítima da sua própria imaginação, ou se algo realmente o chamava.
À medida que se afastava da cidade, a sombra da serra parecia crescer, cobrindo a paisagem como uma manta. Ele parou diante de um riacho, onde uma figura se materializou, um homem velho, com a pele enrugada e os olhos tão profundos quanto o abismo. O homem o olhou com um sorriso que parecia mais uma máscara de dor do que de prazer.
— Vai subir? — perguntou o velho, com voz rouca, como se estivesse falando de um destino fatal, e não de uma simples subida.
Marcos hesitou, mas o desejo de entender o que estava por trás daquela história falou mais alto.
— Sim — respondeu ele, com firmeza. — Quero ver o que está lá em cima.
O velho fez um gesto com a cabeça, mas antes de sair, disse:
— Se for por curiosidade, vai voltar de mãos vazias. Se for por coragem... bem, aí, o que vai encontrar, eu não sei. Mas que vá com cuidado. O canto da serra não é coisa de homem. É de algo... antigo. Algo que nunca morreu.
Marcos riu, achando que aquilo era apenas um conto de velha. Não acreditava em coisas sobrenaturais, mas não podia negar que o medo começava a nascer em seu peito, como uma semente escura e molhada pela dúvida.
Ao seguir subindo, o som se intensificou, como se estivesse mais perto agora. Marcos não sabia se era o vento ou a própria serra que estava tentando lhe fazer companhia, mas o canto parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo, como se o ar ao seu redor estivesse vivo. Foi então que ele viu a primeira marca: uma árvore, com o tronco retorcido e cicatrizado, como se tivesse sido marcada pelo tempo e pela dor. E ao redor dela, pedras dispostas de maneira estranha, formando um círculo.
Marcos estava perto demais para voltar agora. Sentiu que algo o puxava, algo que não queria ser visto, mas que, ao mesmo tempo, não poderia mais ser ignorado. Ele atravessou o círculo de pedras, e foi quando a terra abaixo dele começou a tremer. O chão vibrou como se a serra, toda ela, estivesse viva, pulsando.
Foi então que viu, ao longe, uma figura esquelética, de longos cabelos negros que flutuavam no ar. Seus olhos eram como duas chamas vermelhas, e seu corpo se retorcia, uma mistura de humano e algo muito mais antigo. A entidade o encarou, e a sensação de horror tomou conta dele, como uma lâmina cortando sua alma.
— Você não deveria estar aqui — sussurrou a criatura, sua voz não humana, carregada de ecos ancestrais. — Não deveria saber. Mas já sabe, não é? O canto da serra não é para ser ouvido por quem ainda tem sangue nas veias.
O jornalista sentiu um frio profundo atravessar seu corpo. Ele tentou correr, mas seus pés estavam pesados, como se o chão o segurasse. A sombra da criatura se estendeu por ele, envolvendo sua mente com imagens terríveis: povos antigos, dançando ao redor de fogueiras, rituais que invocavam entidades das profundezas da terra, pactos feitos com forças primordiais que jamais deveriam ser despertadas.
De repente, ele ouviu uma voz humana.
— Não é o seu destino, Marcos! — gritou o velho, do outro lado do círculo de pedras, tentando alcançar o jovem. — O que você buscou é mais antigo que todos nós! Volte agora, antes que a serra leve sua alma!
Mas era tarde demais. Marcos tentou gritar, mas sua voz se dissolveu no vento. A sombra da criatura o engoliu por completo, e a última coisa que ele ouviu foi o som do canto — um canto de dor, de perda, de algo que nunca deveria ter sido acordado.
Na manhã seguinte, a cidade acordou com o sol brilhando como se nada tivesse acontecido. O velho, no entanto, sabia o que ocorrera. Ele sabia que mais uma alma havia sido tomada pela serra, mais um corpo levado pelas sombras, como acontecera com tantas outras pessoas ao longo dos séculos.
Marcos nunca mais foi visto. Alguns disseram que ele havia enlouquecido e fugido, mas os mais velhos sabiam a verdade. Ele se tornara parte do canto da serra, uma voz a mais no coro eterno das almas que não conseguiam escapar de suas garras.
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SOMBRAS DA NOITE
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