O mundo, que já estava bem ruim, se afundou em uma lama de desespero que parecia não ter fim. Mas, no fundo, sempre soube que tinha sido abençoado. Diziam que era só uma gripezinha, não era? Mas, cinco anos depois, todo mundo estava infectado. O governo, claro, continuava afirmando que tudo ficaria bem. "A medicina vai dar conta", disseram. E, por um momento, parecia que sim. Encontraram a cura, não é? Oba! Mas quem se importa com os efeitos colaterais quando já não há mais nada para perder?
E foi assim que, alguns anos depois, 99% da população mundial virou zumbi. Uma porção de corpos mortos, com fome, andando pelas ruas, querendo o que não podiam mais ter. E o resto? Bem, o resto era eu.
Mas, de alguma forma, eu ainda estava de pé. Por algum milagre, ou talvez só pela pura sorte, eu me mantive vivo. Um cara abençoado, como sempre me disseram. O governo, que já não tinha mais exército, resolveu oferecer recompensas altas para quem conseguisse exterminar a nova praga. Para quem tivesse coragem — ou desespero — de enfrentar os mortos-vivos. E acredite, a demanda era alta. E eu sabia atirar. Porque sou abençoado, como já disseram.
A cidadezinha onde eu cheguei tinha sido grande um dia. Famosa, até. Mas isso era lá atrás, quando ainda existiam coisas como música, risos e a ideia de um futuro. Agora, parecia mais uma sombra daquilo que fora. Eu sabia disso, porque eu me lembrava, apesar dos anos que pesavam nos meus ossos. Eu, um homem velho, de olhos cansados e dedos ainda leves. E, claro, o rifle. Sempre com ele. E eu sei o que você está pensando: "Como ele ainda pode atirar assim, tão bem, com a idade que tem?" Eu só posso te dizer uma coisa: sou abençoado.
Encontrei o garotinho num armazém, mexendo nas prateleiras de produtos podres. Não sabia o que ele queria — comida, munição, talvez um pouco de esperança que, sabe, nunca volta. A maioria dos vivos já tinha se ido, ou virado um daqueles seres que vagueiam pelas ruas, com os olhos em branco e a carne murcha. Mas o garoto estava ali, apontando um rifle para mim. O desespero nos olhos dele era palpável, mas eu não me movi. Tinha visto muito mais.
– Abaixa a porra desse rifle, garoto. Não vim aqui para roubar o que você está roubando.
Ele parecia surpreso, mas depois a tensão se dissipou e ele baixou a arma lentamente.
– Não estou roubando nada – ele disse, com uma voz trêmula, mas firme. – Estou coletando. Diferença.
Eu dei uma risada seca. Ele sabia as regras, claro. Mas eu estava nessa merda há mais tempo que ele. Muito mais tempo. Ele ainda tinha aquele olhar de quem acha que a vida vai de alguma forma ser generosa. Eu ri por dentro.
– Tudo bem, então. Vamos trabalhar juntos, ok?
Ele hesitou, mas me deu um pequeno aceno de cabeça. Ele sabia que não tinha outra escolha.
– Conheço esta cidade mais do que ninguém – ele disse, como se isso fosse um trunfo.
– Será um prazer trabalhar ao seu lado, garoto – respondi, sem dar muita importância para o que ele falava. Ele não sabia o que era perder tudo. Não sabia ainda o que era ver o mundo se desintegrar aos pedaços. Ele ia aprender.
Meses se passaram, mas a cidade nunca deixou de estar imunda. Tinha gente suficiente para justificar o trabalho, mortos-vivos vagando nas ruas e nos becos, com suas bocas abertas e a fome que nunca se saciava. Nós não tivemos piedade, nem por um segundo. O que eram aqueles corpos? Apenas cascas, com vestígios de um passado que já não existia.
Era um trabalho que não exigia compaixão. E o garoto, apesar de ser novo, era bom no que fazia. Tinha um dedo firme no gatilho, e a frieza na hora de atirar. Ele tinha aprendido rápido. Mas eu... eu ainda era o mais rápido. E o mais preciso. A velha guarda, como dizem.
Quando a cidade foi finalmente "limpa", como eles dizem, os mortos espalhados pelas ruas e os zumbis caídos, eu olhei para o garoto. Ele estava lá, os olhos mais duros do que antes. O trabalho estava feito. Mas eu sabia. Eu sempre soube. Só um de nós ia sair com a recompensa.
– Só um de nós vai sair dessa cidade com a recompensa – disse eu, com um sorriso torto.
O garoto olhou para mim, sem hesitar. Um sorriso estranho se formou nos lábios dele.
– Eu sei disso, coroa.
E foi ali, naquela noite, que a última mentira que eu contei me matou. Porque meu dedo é leve. Sempre foi.
O garoto caiu sem dizer mais nada. Ele nunca teve chance. E eu fiquei com a recompensa, uma recompensa que não ia durar muito. Mas isso não me importava. O dinheiro? Eu nunca precisei dele. A questão é que as cidades estão em ruínas e eu ainda sou um homem velho, com a memória de um tempo que já passou. E talvez eu não seja tão abençoado assim. O mundo está indo para o inferno, e eu sou só mais um que já aprendeu a lidar com o cheiro de morte no ar.
Agora, é hora de ir para outra cidade. Os impostos estão altos, a inflação é um pesadelo e eu... bem, sou só um cara abençoado. Não sei quanto tempo mais isso vai durar. Mas, no fundo, sei que o fim vai chegar. Só não sei se vou ser rápido o suficiente para fugir dele.
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SOMBRAS DA NOITE
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