Capítulo 68

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Não saberia dizer quanto tempo passou ali. Talvez tivesse adormecido em algum momento, muito embora não recordasse do fato.

Apenas uma coisa assomava sobre a sombra de seus temores: a voz da mãe, cantarolando uma antiga cantiga que costumava cantar para Lucien quando era pequeno, quando as paredes do Castelo Outonal pareciam se fechar a sua volta. Ele jamais ouviu outra pessoa que não sua mãe entoando aquela canção, e não sabia de onde ela provinha - certamente não se parecia em nada com as músicas que costumava ouvir na Corte. O som era absurdamente reconfortante, e sempre trazia a Lucien pensamentos felizes.

- Meu pequeno raio de Sol. - Melinda sussurrou, acariciando os cabelos do filho mais novo.

Lucien não se mexeu; ela sempre o chamava assim em momentos como este.

Passaram mais algum tempo nessa contemplação do passado antes que Melinda, enfim, pousasse a mão no ombro de Lucien e desse algum indício de que precisavam se mover. Quando ele por fim o fez, o rosto da mãe estava sério. O macho rapidamente voltou a prestar atenção em seu entorno; algo na expressão severa e atenta da mãe o indicava que ela estava prestes a entrar no assunto para o qual o chamou até ali, para início de conversa.

- Precisamos conversar seriamente. - Começou Melinda.

O macho ajeitou os cabelos ruivos desgrenhados com os dedos antes de se levantar e oferecer a mão para ajudar Melinda. Com um sorriso, ela aceitou a mão, levantou-se e começou a bater no vestido branco para remover a sujeira do chão. Lucien sentiu-se um tolo, uma criança mimada - como Beron gostava de chamá-lo - mas permaneceu em silêncio. A fêmea ruiva parada à sua frente não perdeu mais tempo e voltou a falar rapidamente.

- Não me leve a mal, querido, realmente gostaria muito de conhecer sua parceira, mas fico feliz que não a tenha trazido até aqui hoje.

- Ela escolheu não vir. - Respondeu o macho, a voz rouca devido aos acontecimentos anteriores.

Melinda abriu um pequeno sorriso de lábios fechados - se pelo fato de Lucien ter respeitado a decisão de uma fêmea, algo incomum no meio em que a mãe vive, ou pelo fato de Elain ter sido esperta, ele não sabia dizer. Mas Melinda prosseguiu como se Lucien não a tivesse interrompido.

- Não sei os detalhes, mas eis o que sei: Beron está tramando alguma coisa grande. Fez um acordo com um macho humano, algum tipo de lorde que acabou se casando com a mais nova das Rainhas Humanas.

- Graysen. - Lucien cuspiu o nome como se fosse um insulto.

A mãe assentiu e prosseguiu.

- Beron quer expandir o território Outonal.

- Em outras palavras, quer tomar a Corte Primaveril. - A mente de Lucien trabalhava rápido. - Com Tamlin desaparecido e a corte enfraquecida, é a hora certa de atacar. Mas ele deve saber que os outros Grão-Senhores não tolerarão esse tipo de traição.

- É por isso que ele aceitou a barganha com o humano. O homenzinho quer Elain a qualquer custo, e prometeu os exércitos humanos para Beron em troca dela, e em troca de proteção contra os feéricos.

Lucien não sabia o que considerava mais estranho: Beron fazendo acordos com humanos, ou Graysen fazendo acordos com feéricos.

- Foi por isso que ele a obrigou a convidá-la para vir até aqui hoje. Fui avisado de que haveria uma armadilha.

- Fico feliz que Eris tenha conseguido avisá-lo a tempo. - Melinda sorriu.

- Você o enviou? - Lucien franziu a testa, genuinamente confuso.

Um barulho vindo ao longe no corredor fez ambos se calarem para ouvir. Passos pesados e vozes abafadas chegaram até eles, mas seguiram caminho.

- Fique atento, querido. - Melinda falou, quando achou que já era seguro. - Não sei exatamente o que Beron tem planejado, mas vou tentar mantê-los informados. - Caminhou até a porta, abriu uma fresta e espiou para fora antes de voltar a olhar para Lucien. - E pense no que conversamos antes. Permita-se ser feliz. Permita-se sentir novamente.

Caminhou até onde o filho estava, deu-lhe um beijo na bochecha e um abraço apertado.

- Amo você, meu raio de Sol.

E com isso, Melinda desapareceu no corredor escuro das masmorras do Castelo Outonal.

Lucien aguardou, repassando em sua mente as informações que a mãe lhe dera. Se Beron estava por trás de Graysen, talvez o ataque à Corte Primaveril poucos dias antes tivesse pouco menos a ver com Elain e mais com a conquista do território. Beron provavelmente deu instruções e meios ao Lorde humano para atacar a Primaveril, certamente como uma forma de teste, para ver se o exército dele realmente seria capaz de chegar tão longe - e de fato, foram. Não queria nem pensar no que aconteceria caso seus poderes mais internos e brutos não tivessem se manifestado em reação ao perigo que os humanos representavam à vida de sua parceira.

Agora, mais do que nunca, era imprescindível que localizassem Tamlin e fizessem com que ele voltasse ao seu posto de Grão-Senhor. A visão de Elain - a Corte Primaveril em chamas e uma besta caída do trono - começava a fazer sentido. "A besta caiu do trono. Seu semelhante o traiu", ela dissera. E se Lucien for traduzir para palavras claras, aquilo significava a morte de Tamlin por outro Grão-Senhor: seu pai, Beron.

Lucien tinha que impedir aquilo.

Respirando profundamente e tentando bolar um plano em sua cabeça, o macho ruivo saiu da cela escura da masmorra a passos pequenos, não querendo passar mais nem um minuto ali sozinho. Caminhou silenciosamente pelos corredores sombrios, perdido em pensamento, até que ouviu um som estranho, parecido com um rosnado de cão.

O som abafado vinha de alguns corredores a frente, e o macho rapidamente encostou-se na parede de pedra e apurou os sentidos. Os sons vinham abafados, pareciam estar dentro de uma das celas. Tentando puxar na memória o mapa das masmorras, Lucien achou que talvez aquele local pudesse ser onde os prisioneiros eram torturados, mas não tinha certeza.

Ao menos, não até ouvir a voz de Eris.

- Você não tem direito de cobrar por nada. Seus serviços não foram utilizados.

A calma e a arrogância que o irmão era capaz de entoar na voz sempre foram motivos de admiração para Lucien, mas pareceram irritar o visitante.

- Eu gastei meu tempo vindo até aqui, um tempo muito precioso. - O outro macho falava com uma certa cadência na voz, que Lucien reconheceu que era provinda de presas. O macho provavelmente era um metamorfo, assim como Tamlin.

- Mandamos um recado três dias atrás. Você comeu o mensageiro antes que ele tivesse a chance de dizer qualquer coisa. Não venha nos culpar por sua falta de autocontrole.

Aquilo provocou um rosnado ainda maior do outro macho, e Lucien instintivamente se aproximou um pouco mais. Com cuidado, conseguiu chegar perto o suficiente para poder espiar pela quina do corredor. De fato, os dois machos estavam na câmara grande e redonda que era usada como sala de tortura. O cheiro de podridão e putrefação ali era quase insuportável para os sentidos apurados dos feéricos, mas não era pior do que a visão dos corpos de guarda ensanguentados e mutilados que se espalhavam como bonecas de pano, totalmente sem vida. O chão estava coberto de sangue seco, e Lucien agradeceu aos Deuses o fato de sua mãe não estar por perto para ver - ou participar - daquela cena.

- Devo satisfazer minha fome, de um jeito ou de outro. - Rosnava o macho.

Estava de costas para Lucien, de modo que ele só conseguia ver sua postura e um pouca coisa de sua composição corporal. Usava uma calça de couro fortificada, com algumas correntes pesadas penduradas do cós baixo. Longas garras se projetavam das pontas dos dedos e Lucien estremeceu - eram maiores e mais afiadas até mesmo que as de Tamlin, mesmo em forma feérica; não queria nem imaginar o monstro que aquele macho se tornaria caso se transmutasse completamente. As costas largas e musculosas estavam retesadas com a mesma ira que irradiava de sua voz. O cabelo preto desgrenhado chegava na altura dos ombros e balançava conforme a respiração do macho ficava mais e mais acelerada.

Mas o que chamou atenção de Lucien não fora nada com relação a óbvia posição de ataque que o macho adotava - aquilo não o preocupava, sabia que Eris conseguiria se defender e escapar com vida, se não fosse por um único detalhe: nas enormes costas do macho havia uma tatuagem negra com um desenho bem incomum.

Um cão de três cabeças.

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