Capítulo 70

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Os irmãos Vanserra estavam agora frente a frente com Mardor. Lucien segurava sua espada com firmeza, enquanto Eris mantinha uma expressão de desdém, como se a situação não fosse um desafio à sua altura. A besta, por sua vez, rosnava e mostrava os dentes afiados, suas três cabeças girando em direção aos irmãos alternadamente.

Lucien apertou a empunhadura da espada até os nós dos dedos ficarem brancos; não era a primeira vez que precisava lutar por sua vida naquele maldito corredor, embora fosse a primeira vez que tivesse o irmão mais velho efetivamente ao seu lado. Mardor rosnou mais uma vez, as três cabeças os olhando ameaçadoramente. Suas presas estavam à mostra, prontas para atacar. Eris, com seu jeito confiante e arrogante, sacou sua própria espada e se preparou para o combate. Alguma parte de Lucien há muito esquecida formigou bem no centro de seu corpo. Ele não sabia exatamente o que era, mas o formigamento se intensificou quando uma das cabeças de Mardor fixou os olhos nos seus.

Com um rosnado horrível que ecoou nas paredes de pedra, a besta atacou Lucien. A cabeça da direita babava enquanto o enorme cão tentava mordê-lo, mas o ruivo escapou por pouco. Com um golpe a esmo, conseguiu acertar parte do focinho da besta, que recuou o suficiente apenas para que Lucien conseguisse vislumbrar uma cabeleira ruiva lutando de forma frenética contra as outras duas cabeças, que urravam e mordiam em uma sincronia mortal. Mardor então levantou a enorme cauda que, para o completo horror de Lucien, possuía uma espécie de esporão na ponta, substituindo a faixa de pêlos que deveria cobri-lo. Eris mais se defendia do que atacava e, apesar de ser um exímio espadachim, não era páreo para um monstro daquele porte, ainda mais quando a fera ricocheteou a cauda, por pouco não conseguindo atingir o quadril de Eris, que se esquivou graciosamente, mostrando os dentes em um rosnado quase desdenhoso.

- Vamos, besta imunda! - Seu irmão riu. - Isso é tudo o que tem para nós?

"Fale por si", pensou Lucien, "não estou a fim de morrer nesta porcaria de Corte".

Com esse pensamento em mente, Lucien fez mais um movimento, investindo com sua espada em direção a Mardor. O assassino de aluguel se moveu com uma agilidade surpreendente, esquivando-se do golpe e contra-atacando com aquela cabeça monstruosa. Eris por sua vez, usava sua habilidade de batalha para bloquear os ataques das demais cabeças com sua espada e punhos, agora flamejantes, brilhando intensamente com o fogo outonal.

A luta se desenrolava em um frenesi de golpes, magia e fogo. Lucien seguiu a deixa do irmão e usou seus poderes para criar rajadas de chamas que envolviam Mardor, mas o assassino era rápido e habilidoso em se esquivar. Eris se mantinha na defensiva, bloqueando os ataques das cabeças da besta com maestria, mas sem muita chance de contra-ataque. Mardor era implacável, suas três cabeças atacando em sincronia, mordendo e arranhando os irmãos feéricos. A força bruta do assassino era evidente, e a luta estava claramente indo contra Lucien e Eris.

Quando uma das enormes presas raspou contra a pele do antebraço de Lucien, ele sentiu que estava na hora de jogar mais pesado. Concentrou sua magia, sentindo o calor formigando em suas mãos. Com um movimento rápido, o ruivo lançou uma rajada de chamas em direção a Mardor. As chamas atingiram o pêlo escuro, queimando-o até chegar a pele, causando uma série de rugidos de dor. Uma das cabeças da besta se contorceu, enquanto as outras duas tentavam deixavam o outro rival e vinham morder o ar em sua direção. Eris aproveitou a distração momentânea de Mardor e avançou com um golpe preciso de sua espada. A lâmina cortou o ar e acertou o flanco da besta, arrancando um jorro de sangue.

Mardor rugiu de raiva e dor, balançando as cabeças furiosamente. Ele era uma criatura formidável, e mesmo ferido, sua força era impressionante. Lucien continuou a lançar chamas, tentando manter a besta à distância, enquanto Eris se movia com agilidade, desviando dos ataques de Mardor e retalhando sua carne sempre que tinha uma abertura. Os irmãos trabalhavam em sincronia, um lançando chamas enquanto o outro avançava com a espada. De novo e de novo e de novo, uma dança de fogo e metal que só terminaria quando ambos vencessem - ou morressem tentando.

A balança da vitória finalmente começou a pender para o lado dos irmãos, que continuavam seu ataque incansável, fazendo o monstro recuar, como se estivesse surpreso por alguém conseguir realmente acertá-lo. O cheiro de carne queimada permeava o ar e trazia à tona lembranças não muito felizes, de épocas muito mais sombrias. Lucien afastou aquelas lembranças para o fundo da mente, não era hora de reviver traumas do passado. Mardor estava cada vez mais enfraquecido, mas sua resistência parecia inesgotável.

Em um momento de descuido, Mardor conseguiu agarrar Eris com uma de suas garras, lançando-o contra a parede com uma força devastadora. Lucien gritou o nome de seu irmão enquanto continuava a atacar com suas chamas. A besta virou sua atenção para Lucien, avançando com uma velocidade absurda para um ser daquele tamanho, as presas afiadas prontas para dilacerá-lo.

Mas antes que Mardor pudesse alcançar Lucien, Eris se levantou, apoiando-se em sua espada. Com um dos joelhos no chão, usou o punho para limpar o sangue que escorria pelo canto dos seus lábios; pura fúria irradiava de seus olhos. Com um grito, ele se lançou sobre Mardor, golpeando com todas as suas forças, fogo e metal se unindo em um golpe que jurava morte. A besta estava distraída tentando alcançar Lucien, que ainda se defendia freneticamente, e não viu quando Eris escorregou de joelhos no chão encharcado de sangue, parando imediatamente abaixo do enorme corpo do cão de três cabeças. Brandindo a espada acima de sua própria cabeça, Eris perfurou o coração de Mardor, mas a fúria dentro de si precisava de liberação, e não estava satisfeito apenas em apunhalar o monstro, queria estripá-lo. Então, arrastando sua espada pela barriga do monstro, Eris banhou-se nas entranhas que caiam sobre si.

As três cabeças rodopiaram, percebendo tarde demais que seu fim havia chegado. Os terríveis olhos de cores diferentes rolaram para trás, as línguas cheias de saliva penderam nas bocas abertas e, somente então, Mardor desmoronou, caindo para o lado como um enorme tronco de árvore.

Alguns segundos se passaram antes que Lucien pudesse respirar aliviado. O ruivo jogou-se de joelhos no chão, deixando a espada ensanguentada cair ao seu lado. Alguns momentos se passaram sem que nenhum dos irmãos proferisse nenhuma palavra, sentindo aquele êxtase pós-batalha. Os dois se olharam, então, uma mistura de respeito e tensão entre eles. Tinham enfrentado um inimigo mortal juntos, e isso os aproximara de uma maneira que eles não experimentavam há muito tempo - se é que algum dia haviam experimentado.

- Você não é tão inútil quanto eu pensava. - Eris finalmente disse, com um sorriso debochado.

Lucien sorriu de volta, mesmo que fosse um sorriso cansado.

- Nem você, irmão. - Apontou com o queixo para o corpo inerte de Mardor. - Como vai explicar isso a Beron?

- Darei meu jeito. - Eris deu de ombros, finalmente levantando-se de onde as tripas de Mardos estavam espalhadas. - Mas antes, preciso de um banho.

O Vanserra mais velho se encaminhou para a saída do corredor, antes de perceber que o mais novo não o seguia. Uma sensação abrupta de nostalgia acometeu Lucien quando Eris olhou por cima do ombro, repetindo uma frase que já fora dita tantas e tantas vezes durante a infância de Lucien.

- Vamos, você não quer que ele te pegue em meio a essa bagunça.

E assim, o herdeiro da Corte Outonal e o seu irmão proscrito caminharam lado a lado pelos corredores sombrios, em meio a um silêncio permeado de camaradagem que só uma batalha pela vida é capaz de fornecer a dois indivíduos como eles. 

Corte de Flores FlamejantesOnde histórias criam vida. Descubra agora