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Tique-taque.

O tempo é algo engraçado. O passado existe apenas nas nossas mentes e o futuro é tão incerto que causa dor de cabeça. Mesmo assim, nós, seres humanos, costumamos vagar entre passado e futuro diversas vezes por dia. Ele não é maleável. Ele é relativo.

Mas e se eu dissesse que o tempo... não existe?

Por uma fração de segundos eu acreditei que não.

Tique-taque.

* * *

Quando abri o armário, joguei todas as coisas para fora.

Agarrei o traje e os broches. Queria vesti-los, mas não daria tempo. Corri até o quarto onde Zylia ficou e agarrei a mochila de galhos. Poderiam ter pensado em pegar isso antes. Enfiei o galho de Parvin lá dentro e aproveitei para agarrar a caixa de fotos de Renoward na volta.

Sabia que bens materiais não compravam a vida. Mesmo assim, aquilo era importante demais para mim. Queria ter essas coisas. Sabia também que era tolice arriscar minha vida por algo tão fajuto, mas, imaginando o futuro onde tudo estaria perdido, eu ao menos teria lembranças. Se isso fosse isso tudo o que me restasse, então valia a pena.

O vestido batia contra as minhas pernas e isso me irritava. Pinicava e parecia querer rasgar a pele. As adagas incomodavam sob aquele monte de tecidos.

Um chiado foi ouvido, mas eu não precisei olhar para trás para saber que aquela fumaça negra vinha atrás de mim.

Mais do que minhas pernas permitiam, eu corri como se não houvesse amanhã. Na minha cabeça, havia um turbilhão de coisas. Em relação ao Imperador ou quando o assunto era Zylia. Ou Ayaz, que realmente não mentiu quando disse que a amava. Ou Aaden, que não aceitava, mas amava sim, Alyssa. E Alyssa... garota esperta, mas talvez tão inexperiente com o mundo quanto eu. Nós duas tivemos histórias, mas nenhuma de nós entendia como realmente o mundo era. Talvez ninguém entendesse.

Como o tique-taque que soava sob nossos ouvidos todos os dias era uma contagem escruciante. O dia podia acabar agora e aquele ridículo tique-taque continuaria para os outros. Mas e para mim? Seria assim para sempre? Correria das pessoas por toda minha vida ou teria a chance de enfrentá-las e, por sua vez, capaz de provar-lhes que estavam erradas?

A quem eu queria enganar... eu também estava errada. Esta história nunca foi sobre mim ou o que eu deixei de fazer. Sempre foi sobre Yüksek. E sempre será.

Quase tropecei quando Harvey apareceu na minha frente com a fumaça ao redor dele, espiralando seu corpo. Os olhos do príncipe de Parvin estavam avermelhados. Senti um cheiro forte; talvez enxofre. Ou sangue.

Não sabia como ele estava vivo. Apesar das manchas roxas por todo o corpo e da marca de lesão no pescoço, ele respirava normalmente e mancava como se tivesse apenas uma torção. Seu braço estava no lugar; seu olhar, feroz.

Ele abriu um sorriso.

— Já está indo embora, princesa?

— Não há nada aqui para mim, Harvey.

Então, riu.

— Você teria de tudo aqui. Nunca precisaria se preocupar com nada.

— Prefiro não ficar com a mente aprisionada.

— Essa é a maior mentira que contaram a você! — Harvey apertou os olhos de raiva. — Ninguém aqui tem a mente aprisionada. Todos escolheram isso!

— Mas eu não escolho. Minha liberdade é mais atrativa que tantos bens materiais.

Ele cerrou os dentes. Fechou as mãos em um punho, onde a fumaça se levantou, formando uma parede atrás dele e bloqueando o único caminho às escadas.

— Nunca encontrei alguém tão insuportável quanto você.

— É um prazer.

Harvey riu novamente, sombrio.

— Não será quando seu sangue for derramado.

Engoli em seco. Não podia demonstrar. Meu coração bateu acelerado e, de repente, minhas mãos estavam frias.

A fumaça avançou pelo chão e enroscou-se no meu tornozelo. Gritei pela dor que me atingiu. Harvey estava queimando minha pele, quebrando os ossos. A fumaça subiu e eu soltei as coisas quando me encolhi pela dor. Não podia agachar; aquela coisa chegaria mais rápido em meu coração.

— Você destruiu minha corte — disse. — Destruiu meu plano e minha única chance de ser poderoso.

— Você me parece bem forte agora.

A fumaça parou próxima aos joelhos quando Harvey se aproximou, segurando meu rosto.

— Eu quero ser mais forte do que ele.

— O quê?

— Exatamente o que você ouviu, princesa. Quero ser mais forte que o Imperador.

Apesar da dor, eu ri. As lágrimas desceram pelo meu rosto, traçando uma linha melancólica que acompanhava a risada.

— Sabe por que você não conseguiu, Harvey? Porque isso é impossível.

— Não é. Eles me prometeram que não.

— Seja lá quem são "eles", mentiram para você. Ninguém chega aos pés do Imperador. Ninguém é mais forte do que Ele.

— Você está tentando fazer minha cabeça e eu não vou permitir isso, princesa. Acredito fielmente no que me disseram.

— Então você vai morrer, Harvey. Seja lá o que este mundo prometeu a você, eles mentiram! Yüksek é a única pessoa confiável que existe!

— Não. Pare de mentir.

— Estão fazendo sua cabeça, ganhando seu coração. É isso que querem. Querem aprisionar, prometendo uma falsa liberdade. Querem te manter alienado. Querem dizer a você que pode fazer tudo, mas não pode! E quer saber por quê?

Ele ficou em silêncio.

— Porque é assim que são. São cruéis. Querem acabar com tudo. Eles gostam disso, sentem prazer nisso. Ou você acha que é normal alguém abusar de uma criança ou matar o próprio filho? Acha que isso é a humanidade sendo o que era para ser? Era para trazermos o Reino do Imperador para Ulyan, não o reino dessas coisas.

Toquei o gibão dele imaginando, por alguns segundos, como seria se ele fosse conosco. Para ser honesta, estava com medo, mas não podia deixar Harvey cego e ignorar sua cegueira.

— Você pode deixar isso para trás agora. Pode ser tão livre quanto nós somos.

— Livres? Acha que não percebi a quantidade de cicatrizes existentes no seu corpo? Isso é ser livre? Vocês sofrem muito mais do que eu.

— Entretanto cada cicatriz minha pode contar uma história. As suas podem?

— Eu não ganhei nenhuma desde que comecei a dar ouvidos a eles.

— Acho que você está confundindo as coisas. A dor é um bom professor. Yüksek não impede algumas cicatrizes de surgirem, mas acalenta e auxilia em cada recuperação. Ao invés de passar por isso sozinho, você teria alguém que apartaria toda a dor.

— Seu Senhor diz muitos nãos. O meu diz muitos sims.

— Meu Senhor responde aquilo que você pediria caso soubesse o que ele sabe. O seu deixa fazer tudo o que quer, afinal, a única coisa que ele não aceitaria, é perdê-lo para Yüksek.

Minhas pernas estavam paralisadas. Se ele não aceitasse o que eu estava falando, eu seria morta. Sabia disso porque sentia ainda aquela fumaça quente nas minhas panturrilhas.

Ele me encarou, sério. Então, a fumaça subiu.

— Não — disse.

— Então eu sinto muito.

Quando Vanella encachou-se na minha mão, enfiei com tudo no corpo de Harvey.

Arthora | A Ascensão dos Sete ReisOnde histórias criam vida. Descubra agora