52 - Lembranças

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Lara

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Por um instante, ver Kiara naquele estado me desestruturou inteira. Agora era no mínimo explicável o modo opressor como ela se comportava nos corredores da escola. E por falar em escola, deixo de ir um dia apenas e já sou metralhada com um ex namorado espalhando boatos ao meu respeito e uma quase expulsão para lidar? Acho que como diz minha mãe "nasci virada para a lua". Fui na cozinha e peguei um copo de água para tentar deixar Kiara mais calma. Melissa estava em choque com a situação, mas se manteve ao nosso lado. Ela sempre teve um carinho especial por Kiara, desde que éramos melhores amigas Mel a tratava como se fosse da família, e certamente agora não seria diferente. Após o episódio grosseiro que houve, eu estava me sentindo mal por ter recebido Kiara de forma tão pouco receptiva. Só agora me dei conta da real barra que ela está passando e tudo que fiz foi querer virar as costas. Como pude? Éramos tão amigas, quando me tornei esse ser tão egocêntrico e egoísta? E dai se ela já errou comigo, desde quando comecei a agir na mesma moeda? Acho que vê-la assim serviu para me mostrar que meu egoísmo é uma armadilha do meu ego.

- Você pode ficar aqui. Esqueça a forma como agi mais cedo, eu estava com a cabeça quente. Foram muitas informações em pouquíssimo tempo para digerir. - falei de forma amigável, retomando o assunto anterior.

- Fico feliz que tenha repensado, filha. - Melissa disse sorrindo em cumplicidade, com um olhar que traduzia um "estou orgulhosa".

- Obrigada, Lara. Eu sei que não mereço o que estão fazendo por mim, afinal eu deixei me tomar pelo preconceito de minha mãe e virei as costas para vocês que sempre foram tão boas comigo. Sou muito grata a você dona Melissa, por não me virar a costas nesse momento. Eu juro que se eu pudesse, iria para outro lugar para não ter que incomodar vocês, mas acontece que minha família é composta de pessoas convencionais como minha mãe é. Na cabeça deles o homossexualismo é motivo para envergonhar a família e que pode ser revertido com terapias e terapias. Não quero ser submetida a isso. Eu precisava de um ambiente como esse, composto de pessoas que me compreendendo e não me julgam pela minha condição.

- Pequena Kiara, eu já estive no seu lugar, eu sei o pavor que é não ter para onde ir. Eu nunca te deixaria passar por metade do que passei para achar abrigo. Além disso, eu tenho um carinho enorme por você, desde a primeira vez que encontrou nessa casa, ainda pequena, segurando a mão da minha ruiva e dizendo que ela era a melhor amiga que você poderia ter. Você é cativante, meiga e apesar de ter se afastado, sei que minha filha nunca encontrou uma amiga tão especial quanto você. O laço de amizade que vocês têm é mais forte que qualquer desavença. Nós nunca viraríamos as costas para ti. Seja bem-vinda e fique o tempo que precisar.

- Se Lara pudesse saber o quanto me arrependo de ter me afastado... - ela disse me olhando tão profundamente que entendi aquilo quase como se fosse uma declaração.

- Vamos deixar o passado no passado. - falei desconcertada.

- Tenho fé que vocês retomarão a amizade que tinham. Agora subam, tomem um bom banho relaxante, que prepararei algo para jantarmos... Lara te mostrará o quarto de hospedes, e como está um pouco tarde para sairmos para comprar roupas, use algo de Lara que te sirva, amanhã então iremos ao shopping. - Melissa falou animada, tentando nos fazer esquecer tudo que houve. - E quanto ao assunto da expulsão, não ousem se preocupar, ligarei amanhã mesmo para Rafael e o deixarei a par de tudo para saber o que podemos fazer dentro da lei para resolver essa situação. E se ela ousar ir à frente com essa história de expulsão, faço Eduarda publicar uma matéria criticando a conduta preconceituosa da diretora de ensino de uma das instituições mais renomadas do estado. Certamente isso não será bom para os negócios, já que ela depende da visibilidade para que os alunos continuem estudando e os pais pagando a mensalidade exorbitante cobrada. Se ela quiser mesmo mexer nisso, terá que saber com quem está lidando. - Melissa sorriu tranquilizando-a. Mas percebi no olhar de Kiara o quanto ela estava mal. Era a mãe dela afinal, por mais má que fosse, era A MÃE DELA.

- Vem? vamos? - falei estendendo minha mão e subindo as escadas para guia-la, enquanto ela seguia meus passos.

Eu estava orgulhosa do modo como minha mãe estava conduzindo as coisas. No fundo acho que tenho sorte por ter mães incríveis, que me entendem, apesar de serem extremamente exigentes. Eduarda apesar do que havia feito mais cedo, e toda aquela história de comprar Catarina, sei que ela nunca faria algo com o intuito de me machucar. No fundo entendo que ter dinheiro atrai pessoas oportunistas, e talvez ela só estava protegendo sua cria. Acho que presenciar uma cena como essa me deu maturidade para compreender algumas séries de coisas.

- Acho que minha mãe gosta mesmo de você. - falei enquanto procurávamos algo em meu guarda-roupas que lhe servisse.

- Isso é ciúmes? - ela sorriu, enxugando a última partícula de lágrima que marejava seu olho esquerdo.

- Na verdade não. É só uma observação. - fui sincera.

No meio da bagunça que é meu guarda-roupas, ela viu o álbum de fotos que havia me presenteado em meu aniversário e sorriu ao perceber que eu o havia guardado. Por certo acreditava que eu o jogaria na primeira oportunidade, mas bom, obviamente que eu jamais faria isso, são minhas lembranças que estão contidas ali também afinal. Não resistimos e começamos a folhear juntas nossas fotos, lembramos de cada episódio que passamos juntas: o acampamento de verão, o halloween... rimos lembrando das travessuras e momentos compartilhados, quando nos demos por conta, já estávamos nos divertindo como nos velhos tempos. Naquele momento eu até consegui por um instante esquecer as desavenças, as lágrimas confusas que derramei com sua partida, naquele momento estávamos ali, rindo, sem sombra de qualquer tristeza ou passado, ela até esqueceu tudo que outrora havia acontecido e eu, bem, quase esqueci que ela ainda era a garota que me machucou quando partiu sem ao menos me dizer a causa do porquê estava indo.

Após folhear um pouco mais, se deparou com a carta que havia escrito declarando para mim seu amor. Olhou em meus olhos e creio que não encontrou reciprocidade para aquelas palavras, e então proferiu:

- Eu só precisava dizer tudo que estava sentindo. Não pense que me deve algo pelo fato de eu ter inscrito isso. Não quero atrapalhar ainda mais sua vida. Desculpa pelo beijo inconsequente que te dei, afinal foi ele que ocasionou tudo isso. Eu aprendi a lição. Eu só queria colocar para fora, não aguentava mais guardar para mim. É que desde aquela dia, no acampamento de verão, quando você se perdeu de mim e eu pensei que nunca mais iria te encontrar e me vi desesperada te procurando em todos os lugares eu entendi que não era forte o bastante para te perder. Lembra quando você finalmente voltou eu só conseguia te abraçar o mais forte que eu podia para conter meu medo de te deixar ir para longe? Foi ali que eu vi que não era forte o bastante para perder você. Mas eu perdi. Quando eu consegui entender tudo que eu estava sentindo, você já estava com outro alguém. Naquela noite, quando um estrela cadente caiu do céu, meu único pedido foi você de volta.

- Meninas, o jantar está servido. - ouvi o grito distante de Melissa nos interrompendo e eu agradeci ao céus por aquela interrupção, pois na verdade eu não sabia o que dizer, como agir. Aquela lembrança havia mexido comigo de fato.

Peguei a carta delicadamente das mãos de Kiara e afirmei: - É melhor nos apressarmos, Melissa não tolera atrasos na mesa.

No meio de tantas lembranças, até esquecemos que o propósito inicial era subir para tomar banho. - Vou descer, você pode usar meu banheiro por enquanto, já separei seu pijama sobre a cama e tem toalhas novas no primeiro compartimento do banheiro. Fique a vontade e se precisar de algo basta chamar. - Tentei ser o mais cordial possível, enquanto guardava a carta e o álbum no canto mais reservado da minha gaveta.

L a r a - [ROMANCE LÉSBICO]Onde histórias criam vida. Descubra agora