Gideon
Lembro-me de duas coisas antes de apagar.
Um: Rafael estava com a mão no meu corpo e doía, cada dedo dele em mim, parecia queimar e toda vez que eu tentava falar, para implorar que ele parasse, minha língua se mostrava ser de cimento, eu mal consegui gritar.
A segunda coisa de que me lembro foi de ter amaldiçoado a pessoa que fez isso.
***
Estou sonhando e sei disso.
Caminho por uma longa estrada de terra amarela, o sol está tão quente que provoca ilusões à minha frente, distorcendo minha visão, deixando embaçada às vezes. Estou com uma calça branca salpicada de tinta. Não. Sangue. Mas o sangue não parece ter vindo de mim porque minha camisa não está manchada, nem minhas mãos. Minhas pernas ficaram trêmulas de repente e eu caí naquele chão quente, mas a queimadura ardente do sol durou pouco, uma sombra esguia se formou à frente e pude sentir o cheiro de algo, algo parecido com graxa: eram botas na minha frente, a centímetros do meu rosto, sem o mínimo esforço conseguiria pisar na minha cabeça. Quando tive coragem de olhar para cima descobri que era Rafael. Mas não o que eu conheço, este Rafael estava vidrado em algo no horizonte, quase perdido demais, desconcentrado. Louco. Sangue escorrendo da sua boca e no fim, ele desabou por cima de mim e o peso me deixou sem ar.
Quando abri os olhos senti que estava caindo. Mas não estava. Meu coração estava acelerado demais, estou sentindo o suor frio nas minhas têmporas. Tive medo de mover meu corpo. Quando decidi fazer algum movimento descobri que estava tudo bem, aparentemente. Isso se eu deixar de notar a agulha no meu braço, o tubo no meu nariz e a dor de cabeça latejante. Consigo me sentir bem, mas cansado até demais. Decido tocar onde eu lembro de ter levado aquele tiro, mas não sinto dor ali, talvez me ejetaram morfina além da conta. Fecho os olhos.
Como as coisas pararam assim? Estava tudo bem, digo, realmente bem e eu sentia que nada podia atrapalhar aquele momento. Senti um formigamento estranho naquele momento quando estive com ele e por mais que eu ignorasse não conseguia mandar embora, era como uma coceira que ia e voltavam.
Queria estar com meu celular agora.
Observo as paredes até perceber que a porta foi aberta devagar e resolvi fingir estar dormindo apesar da minha cabeça não parar quieta em um pensamento: pulo de pensamentos em pensamentos a cada cinco segundos, não consigo decidir em qual deles me firmar, é algo escorregadio, talvez seja uma escada rolante infinita de pensamentos que...
Alguém tocou meu braço.
Calma, digo a mim mesmo e mantenho os olhos fechados com a respiração regular, deve ser só o enfermeiro ou alguma médica. Só isso.
Os dedos não saíram do meu braço por longos minutos até que resolvi abrir os olhos.
Havia um enfermeiro ao meu lado. Um homem alto e musculoso que sorria para mim e o que estava no meu braço não era a mão, ou os dedos, ou sequer o braço dele. Era seu membro.
- O que está... fazendo...?
O rosto do homem mudou diante dos meus olhos, era Bryan. E ele queria enfiar o pau dele na minha boca de novo.
***
O quarto de hospital nem é branco, nem azul ou verde aquoso. É amarelo. Um amarelo que doía nos olhos se você olhasse por muito tempo. Quando olhei para o teto achei que estava ficando louco: o teto está pintado com desenho de animais fofos. Leão, girafa e elefantes sorridentes. Quando olhei para a cadeira de plástico branca vi Rafael Laurent sorrindo debochadamente para as paredes.
- Do que você está rindo? - Tusso - E porquê eu estou nesse quarto de criança? - Tusso mais uma vez.
Quando ele finalmente me olha, percebo que a diversão sumiu do seu rosto. Ou talvez eu tivesse imaginando a diversão o tempo inteiro, ele nem mesmo estava sorrindo. A mandíbula dele está tão travada que vejo o osso pulsando, raiva? Sim, aposto que sim. Mas, porque ele está com raiva de mim? Ele levanta-se lentamente e isso me fez lembrar que ele fazia a mesma coisa no escritório do Hot. Vem até mim e fala, finalmente.
- Aposta quanto que tem um tubo deste enfiado num lugar bem questionador?
Como Rafael Laurent podia me fazer rir agora?
Senti dor no abdômen agora, talvez o efeito da morfina estava se esvaindo. Tentei não pensar na dor por enquanto.
- Porque estou aqui? - Volto a perguntar.
- Aqui num quarto de criança ou aqui no hospital em geral? - Ele nem me deixou completar e continuou seu monólogo. - Está no hospital porque se jogou na direção de uma bala que vinha à direita, no caso, em mim... sinceramente quem atirou foi muito equivocado pois iria errar de qualquer forma. Mas seu gingado fez com que a bala lhe acertasse precisamente nas costelas um pouco perto do abdômen nada impressionante. Quando chegamos aqui, soubemos que aconteceu um acidente envolvendo seis carros... todos eles lotados de gente bêbada, e algumas crianças. As ambulâncias chegaram primeiro que nós e os quartos hospitalares restantes foram ocupados depressa e você iria sangrar até a morte.
- Mas...
- Mas eu disse que não tinha problema pôr você no quarto infantil junto às crianças que vinham na ambulância, os médicos nem se quer questionaram.
- Não podiam ter feito algo no corredor? Que droga... Mas obrigado, de qualquer... maneira.
Seu tom de voz mudou de novo, está mais sério do que a cinco segundos atrás.
- Está doendo muito?
Nego encarando seus olhos aurora. Nunca tinha pensado nessa definição antes, mas os olhos dele são como aurora. Hipnotizantes quanto.
- Quando vou sair daqui?
- Não sei. Não perguntei ainda. Minha mãe estava aqui.
Isso me pegou de surpresa.
- O que ela estava fazendo aqui? Eles me viram?
- Sangrando? Viram.
Que vergonha!
- Não devia se preocupar com isso, Gideon. - Rafael toca no meu braço, do mesmo jeito que fora no sonho. Afastei o braço dele e em resposta recebi uma risada amarga.
- Eu não...
- Eu entendi. - Não, ele não tinha entendido.
Mas também não quis explicar. A dor aumentou gradativamente e agora sinto como se alguém enfiasse uma serra nas minhas costelas movendo de um lado para o outro.
- Coisas assim costumam acontecer com você? Tiros vindos do nada?
- Sempre.
- Imagina quando você casar. - Brinco.
Ele não riu e não deu nenhum indicio de que tinha gostado. Isso me fez encolher meus ombros e me causar mais dor, claro. O quarto ficou em silêncio completo, me deixando querer perguntar para ele por quanto tempo eu tinha apagado ou sei lá, só não queria que ele ficasse me olhando como se eu fosse de outro mundo.
- Porque está me olhando assim? - Eu tinha soado meio rabugento, mas tinha outro jeito?
- Por nada. Só achei que gostaria de saber que você chamou meu nome enquanto estava apagado.
- Eu... O quê?
Ele continuou me olhando do jeito que eu não gosto e de repente virou as costas e saiu do quarto. Eu o odiava quando fazia isso.
Senti um incômodo da dor, mas não quero dormir de novo, tenho medo dos pesadelos.
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Minha Submissão | Série Irmãos Laurent-(Livro 4) (Romance Gay)
RomanceRafael Laurent é o mais novo, o mais sagaz e misterioso dos irmãos Laurent. Gideon veio de muito longe, deixou várias pessoas para trás e chegou para cumprir um objetivo difícil. Uma mistura de mistério, sexo, descobertas de sentimentos e loucura...