- ̗̀Capitulo 66 ˎ'-

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"Nemo me impune lacessit".

      Passados quinze dias, Negan ainda desaprovava cem por cento de tudo que eu fazia, porém, preferiu se manter distante, tentando parecer indiferente.

Mas ele não era um mentiroso tão bom quanto pensava que era. Seus olhos o traíam, acabando com qualquer chance de disfarce de seus sentimentos.
Sempre que meu olhar cruzava com o dele era como se ele dissesse "E daí que eu desgracei a sua vida?! Fala comigo".

Infelizmente para Negan, eu não iria ceder e o meu plano corria maravilhosamente bem, mas ele só descobriria isso quando fosse tarde demais e eu o tivesse de joelhos diante de mim.

Desde que iniciei meu tratamento de silêncio com Negan, passei a ajudar Daniel com seus afazeres no galpão. Era um ótimo jeito de conseguir coisas e o trabalho me ajudava a desestressar e me manter firme.

Certa vez, enquanto auxiliava na contagem de munição e Daniel realizava a limpeza dos mosquetes no galpão de coletas, notei uma caixa no canto de uma das prateleiras, afastada do resto das outras. Por pura curiosidade, eu me aproximei da caixa cristalizada de poeira cinza e a abri, para o meu espanto eu encontrei uma pilha de livros que sofriam com os efeitos cruéis do tempo. O primeiro me chamou a atenção por ser pesado e ter uma aparência gótica. A capa preta continha o nome "Poe" em letras garrafais brancas. Era uma coletânea de contos de terror.  Eu o peguei nas mãos como um tesouro, assoprei suavemente a poeira da capa e das folhas amareladas nas laterais, folheei brevemente o livro e ele se abriu na página 93.  A frase "Nemo me impune lacessit" se iluminou diante de mim em negrito.

Do latim: Ninguém me fere impunemente.

Lembro-me de ter lido "O barril de amontillado", de Edgar Allan Poe, com dezessete anos. E mesmo na época, a suspensão de descrença que eu tive que ter para não rir durante todo o plot era demais pra mim, uma vez que eu sempre considerei a ideia de vingança como sendo uma coisa boba, fútil e desgastante demais para valer a pena.

"[...] Algo tão definitivamente decidido eliminava a possibilidade de risco. Eu não devo apenas punir mas punir com impunidade." — Eu li mentalmente.

É incrível como você pode ver uma coisa várias vezes sem realmente enxergá-la. Nem mesmo Edgar Allan Poe me permitiu deixar a ironia do que eu fazia ali, com Daniel, passar desapercebida, mas o que eu podia fazer?!  O único modo de não ser manipulada é sendo manipuladora.

— Você encontrou meu novo projeto. — Disse Daniel, animadamente, me vendo segurar o livro.

— Projeto? — Pergunto, erguendo as sobrancelhas.

Daniel parou a aplicação de óleo na coronha de seu mosquete e seu rosto ficou terrivelmente iluminado ao se deparar com meu notável interesse.

— Eu vou restaurá-los, são livros velhos mas são uma boa moeda de troca em Alexandria. Aparentemente eles valorizam essas coisas.

— São clássicos. — Eu o corrijo, forçando-me um sorriso. — O conteúdo de alguns desses "livros velhos" formaram o que eu sou hoje.

Ele dá de ombros e me observa com curiosidade.

— Sem querer parecer antiquado, mas nunca imaginei que uma mulher tão bonita quanto você se interessasse por esse tipo de coisa. — Disse ele enquanto limpava o óleo das mãos em uma flanela velha. — Geralmente as mulheres se interessam por coisas mais... você sabe... frívolas.

Perdi a afabilidade momentaneamente.

A velha tática de rebaixar outras mulheres para elogiar uma única. Como ele era baixo!

— Isso foi um elogio?  — Pergunto, porque tudo que eu ouvi foi ele rebaixando meu gênero.

Daniel assentiu.

— Bem, sim, o que eu quis dizer é que você é diferente das outras mulheres, Belle.

—  Não, não, Daniel. Eu sou exatamente igual as outras. — Lancei-lhe um olhar duro e ele rapidamente entendeu.

Aquela era a única verdade incontestável que eu tinha a oferecer sobre mim. Eu sou uma mulher com altos e baixos, choro quando me sinto plenamente feliz, maquino vinganças quando me sinto traída, sou rápida demais no sarcasmo e não penso antes de dar uma opinião potencialmente ácida.

Humana.

Exatamente como todas as outras.

Rapidamente eu me lembrei de minhas intenções e obriguei-me a parecer antiquada o suficiente para receber um elogio masculino com a intenção que aquele teve, ou seja lá o que quer que tenha sido aquilo.

— Mas obrigada mesmo assim. — Digo e Daniel pareceu satisfeito quando continuou seu serviço.

"Continuei, como de costume, a sorrir em sua presença, e ele não percebia que o meu sorriso, agora, tinha como origem a idéia da sua imolação." — Edgar Allan Poe era um gênio.

Passado alguns dias trabalhando ao lado de Daniel, ganhei mais ainda sua confiança. E sendo o grande boca-aberta que ele é, logo se sentiu a vontade para me contar até sobre sua vida de agente duplo entre o Santuário e Alexandria.
Não foi uma surpresa para mim, afinal, sabia de suas "trocas" com Alexandria e Hilltop.

Se esse desgraçado morresse queimado o cheiro podre de corrupção iria impregnar até o céu. — pensei.

Negan não sabia que Daniel fazia negócios com aquelas comunidades mesmo sem o seu consentimento. Daniel poderia se considerar um homem morto se esse fosse o caso. Mas o fato era que a audácia daquele filho da puta, de algum modo, o mantinha vivo. E eu, de certa forma, o mantinha também, porque mesmo sendo um incompetente e um fofoqueiro patológico, Daniel ainda era a minha ponte para Alexandria e consequentemente para o meu irmão. Mas não se engane, ele morreria assim que pudesse.

— Nemo me impune lacessit. — Eu murmuro enquanto deposito o livro de volta na caixa com um pesar que doeu minha alma.

Daniel era do tipo que jogava nos dois lados, mas quando a situação apertava ele se apressava a tomar partido e esse seria o motivo de sua queda. Quando Daniel foi informado que o líder de Alexandria, Rick, começara a contatar outras comunidades para unir forças e lutar contra os salvadores, ele não hesitou em me contar seu plano de fuga.

𝐕𝐚𝐝𝐢𝐚 𝐚𝐟𝐞𝐭𝐢𝐯𝐚Onde histórias criam vida. Descubra agora