Parte 23

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Dois passos depois ele disse:
- A Senhora Madalena me procurou há pouco. Disse que a senhorita precisa de algumas roupas e eu gostaria de ajudá-la, mas creio que terá que esperar até amanhã de manhã.
Com certeza, madame Georgette terá algum vestido que sirva em você.
- Por isso mesmo queria falar com você. Fui até minha bolsa e peguei minha carteira.
- Você já viu algumas destas?
Estendi a mão para que ele pegasse as notas.
- Não. Nunca. O que são? Ele examinava o dinheiro atentamente. Não dava para acreditar!
- São notas de dinheiro. Expliquei desanimada.
- Você usa para comprar coisas...
- Sei o que é dinheiro, senhorita Karol. Apenas nunca vi um que fosse feito de papel. Não deve ter valor algum.
- Tem muito valor! Cada uma vale mais que as outras, Veja, o número impresso nela determina seu valor, o número maior é para a que vale mais
e...
- Você não usa moedas? Perguntou surpreso.
- Ás vezes, para pequenas coisas. Elas não valem muito. Daí entendi.
- Vocês usam apenas moedas, não é?
Ele assentiu e aproximou a nota de seu rosto para examiná-la melhor.
- Então, eu tô lisa! Com certeza a Mastercard não teria colocado uma
máquina de cartão de crédito no atelier da madame sei-lá-oque.
- Como é que eu vou pagar pelo vestido amanhã? Eu disse, mais para mim mesma.
- Isso deve bastar. Ruggero tirou do colete três moedas douradas e estendeu
a mão para que eu as pegasse.
Peguei as moedas automaticamente. Olhei para elas por um minuto, tinha uma coroa desenhada em alto relevo e
depois estiquei a mão para ele.
- Não. Não posso aceitar. Você já tem feito muito me hospedando em sua casa e me alimentando. Não posso aceitar seu dinheiro também.
Ele apenas me encarou, os olhos obstinados
- Guarde isso, Ruggero. Eu não quero. Estiquei teimosamente o braço.
Ele não fez movimento algum.
Então eu fiz. Aproximei-me dele e, como ele não se deu ao trabalho de me estender sua mão, a agarrei e coloquei as moedas dentro dela.
- Senhorita Karol, por favor! Irá precisar de um vestido para o baile. E, apesar de o vestido que Malena lhe emprestou destacar sua beleza, está muito claro que não pode ter apenas um. Ignorei o elogio. Ele apenas tentava me convencer a aceitar o dinheiro.
- Você não sabe quanto tempo ficará aqui. Não pode passar todo o tempo apenas um vestido!
- Eu me viro. Dei de ombros.
- E tenho minhas próprias roupas.
- E acho que deveria guardá-las.
Se algum cavalheiro mais...Inescrupuloso a visse vestida desta forma... Ele sacudiu a cabeça e não continuou.
- Obrigada pela preocupação. Tá vendo? Você está se preocupando comigo sem ter nem uma obrigação pra isso. Eu já estou te incomodando demais!
Então, de repente, tive uma ideia.
- Mas talvez eu possa vender alguma coisa!
- Não lhe restou nada! Vender o que? ele não gostou da minha ideia, tive certeza disso.
- Ainda não pensei nessa parte.
E corri para minha bolsa, tinha que ter
alguma coisa ali que tivesse valor.
Joguei o conteúdo dela sobre a cama e me ajoelhei no chão, procurando por
alguma coisa que pudesse interessar a alguém naquele lugar atrasado.
Tirei o livro, o celular e a caixinha dele do caminho e os guardei, não poderia
vendê-los por diferentes razões, mesmo que morresse de fome, e remexi em minhas coisas. Minhas únicas coisas, tentando encontrar qualquer objeto que pudesse ter algum valor.
Ruggero se aproximou da cama, olhando minha bagunça com curiosidade.
- O que é isto tudo? Indagou.
- É tudo que tenho na vida agora.
Eu disse, desanimada.
- Está vendo algo que possa ter valor? Que alguém possa se interessar para eu tentar vender amanhã lá na vila?
- Humm... Resmungou.
- Não sei bem. Nunca vi nem uma destas
coisas antes.
Podia acreditar nisso.
- Vejamos... Comecei a espalhar melhor meus pertence.
Maquiagem? Não, Ana estava sempre maquiada. Talvez não fosse tão sofisticada quanto as minhas, mas, sem dúvida, era maquiagem.
As minhas chaves?
Pra quê alguém iria querer as chaves de um apartamento localizado dois séculos adiante?
Ketchup?
Ainda não me lembrava de como aquilo tinha ido passar ali.
Camisinha?
Talvez. Sempre útil. E eu podia apostar que ainda não haviam inventado o
preservativo no século dezenove.
Virei-me para perguntar para Ruggero o que ele achava, apesar de não ter a menor ideia de como explicar o uso dela, já que ele não reagia bem quando o assunto era sexo. Tive esperanças de que, se ele apenas lesse a embalagem conseguisse entender. Só então me dei conta de que ele estava bem ali, agachado como eu, com minha Bic nas mãos.
- O que é isso? Perguntou, examinando a caneta de todos os ângulos.
- É uma caneta. Você usa para escrever. -Assim. Tomei a caneta de suas mãos e fiz alguns rabiscos num pedaço de papel minha conta de telefone, constatei.
- Não me diga que ainda não tem caneta aqui?
- Não, não tem! Ele olhava fascinado para minha caneta simples comprada no supermercado.
- Usamos pena e tinta para escrever.
- Ah!. Eu já tinha lido sobre isso.
- É quase igual. Só que ao invés de
mergulhar a ponta da pena na tinta, a caneta já vem com a tinta dentro.
Veja. Apontei o cartucho quase negro dentro do cilindro transparente e a
devolvi para ele.
- Deve ser mais prática, eu imagino.
- É fantástico! Ruggero exclamou.
- Uma invenção maravilhosa! Como
não pensei nisto antes! Seu rosto ficou ainda mais lindo com o sincero entusiasmo.
- Que material é este? Se parece com vidro, mas não é gelado!
- É plástico. É tipo um vidro só que mais resistente. Não vai quebrar se cair no chão, por exemplo.
Não dava pra explicar que plástico era um derivado da nafta, um polímero que bla, bla, bla... Só complicaria mais a
cabeça dele.
- Acha que alguém pode se interessar por ela? Ruggero estava completamente fascinado com a caneta. A olhava como se fosse uma jóia rara.
- Sim. Quanto quer por ela? Indagou, se virando pra me encarar.
- O que? Apertei os lábios.
- Eu a quero. Quanto quer por ela? Estou disposto pagar qualquer quantia! seus olhos brilhavam como duas estrelas.
Percebi o que ele estava fazendo.
- Não posso vender pra você! Disse com certa indignação.
- E por que não? Meu dinheiro é tão bom como o de qualquer outro. Disse ele, ofendido.
- Eu sei disso, Ruggero. Mas você só está tentando me ajudar. Outra vez!
Eu não quero que faça isso.
Fiquei desconfortável com a situação.
Senti-me como uma daquelas garotas aproveitadoras que ficavam com
caras ricos até conseguir arrancar tudo o que podiam deles e depois caiam fora. Porque seria exatamente isso que aconteceria, Ruggero me ajudaria e eu
cairia fora.
- Não é isso, senhorita Karol eu realmente quero a caneta.
É maravilhoso! Ele pegou a mesma conta de telefone e experimentou um risco. -Olhe! mais alguns traços.
- É extraordinária! Sem manchas ou borrões, seria muito útil, principalmente com os livros da contabilidade
Observei seu rosto por um instante os olhos brilhavam e um sorriso entusiasmado o deixou ainda mais lindo. Era como se ele tivesse acabado de encontrar o maior tesouro do planeta.
Sacudi a cabeça e então comecei a rir. Quem dera as pessoas fossem assim
tão fáceis de agradar como Ruggero era! -Tá bom, então é sua. Eu ainda ria.
Ele sorriu radiante e botou a mão no bolso.
- Ah! Não! Pode guardar estas moedas. Eu não vendi, eu te de a caneta.
- Mas não posso aceitar, senhorita, vejo que não tem muitos recursos no momento e este invento vale algumas moedas com certeza, seria injusto tirar-lhe este objeto de grande valor.
Grande valor! Não custou nem dois reais!
- Mas eu quero te dar a caneta... ele sacudiu a cabeça antes que eu pudesse terminar. Tentei outro caminho.
Como um presente! Um presente de agradecimento, por toda a ajuda que tem me dado. Você não vai me ofender recusando a única coisa que posso te oferecer neste momento, vai?
Ele parecia relutante.
- Não quero ofendê-la, senhorita, mas...
- Então, não me ofenda. Aceite, por favor. Gostaria de ter algo realmente bacana pra te dar Ruggero mas no momento tô meio sem opções. Sorri meio envergonhada. Ele também sorriu, ainda que os olhos não, ainda estava contrariado
- Muito obrigado pelo presente.
É estupendo! Não creio que pudesse me
dar algo que eu apreciasse mais.
Então, de repente, uma chama faiscou
em seus olhos.
- E, se me permite, também quero lhe dar um presente. Meu sorriso desapareceu. Eu sabia exatamente quais seriam suas próximas palavras.
- Você aceitaria vestidos como prova de minha amizade não aceitaria? Não me ofenderia recusando um presente meu, ofenderia? Pude ouvir o leve triunfo em tom. Ele jogava sujo. Estreitei meus olhos.
- Não. disse derrotada. - Pode pagar a droga do vestido!
- Excelente. Ele sorriu vitorioso, pegando as moedas outra vez.
- Ruggero, se não quiser engolir estas moedas é melhor guardá-las de novo. Resmunguei carrancuda.
- Precisará delas amanhã. Você já aceitou os vestidos! Exclamou confuso.
- Vestidos, não dinheiro. Expliquei secamente.
- Não sei como funcionam as coisas por aqui, mas, de onde eu venho, não é muito
lisonjeiro quando um homem dá dinheiro a uma mulher que não é a sua.
Estou sendo clara? Ele corou.
- Muito! Perdoe-me, não tive a intenção... - Eu sei que não teve. Eu o interrompi, ainda aporrinhada com a ideia de que ele me comprasse coisas.
- Entregarei a Malena, então. Disse inseguro.
- É melhor. Resmunguei ainda insatisfeita, por que me incomodava tanto o fato dele querer me dar dinheiro?
- Vou deixá-la descansar. Vemo-nos pela manhã. Ruggero se levantou esticando a mão para me ajudar.
Aceitei o apoio e me levantei também assim que olhei em seu rosto na intenção de agradecer, perdi o fôlego.
Ele estava mais perto do que eu havia imaginado. Perto o bastante para que eu pudesse ver pequenos pontos prateados brincando em suas íris escura.
Fiquei ali parada olhando pra ele como uma idiota. Ruggero me encarava também, e só depois de alguns segundos
percebi que ainda segurava sua mão. Tentei puxar minha mão, mas ele a
prendeu um pouco mais forte, não permitindo que eu o soltasse, então se
inclinou, ainda me encarando e, muito delicadamente beijou as costas de
minha mão. Um tremor desconhecido reverberou por minha coluna, senti
minhas bochechas arderem e todo meu copo se arrepiar.
- Boa noite, senhorita Karol. Sua voz baixa e rouca, os olhos não deixaram os meus um só instante.
Outro arrepio.
- Boa noite. Baixei os olhos, tentando esconder meu embaraço e as sensações novas e estranhas que ele havia provocado em mim.
O que estava acontecendo comigo?
Eu sempre soube como agir quando o
assunto era o sexo oposto: como me livrar de um sujeito irritante, como atrair a atenção de um que valesse a pena e nunca, jamais, corava quando um deles me desejava boa noite.
Ruggero sorriu e depois saiu fechando a porta atrás de si.
Continuei ali parada, feito uma estátua, olhando para a porta, minha mão
pinicando pelo seu toque gentil e pensei se, talvez, eu não tivesse enlouquecido de vez.
Eu sabia que voltaria para casa, não sabia como, mas acabaria descobrindo, e que aquelas pessoas, todas elas, incluindo Ruggero,ficariam onde deveriam ficar, no lugar ao qual pertenciam.
Eu não podia me envolver emocionalmente com nenhum deles. Quando eu voltasse para o meu tempo, todos já estariam...
Senti meus joelhos tremerem, não gostei de pensar nisso. Não gostei mesmo!
Mas era a verdade, e eu não me apaixonava desde... Não que eu estivesse apaixonada por Ruggero. Eu não estava! Mal o conhecia! Mas alguma coisa nele mexia comigo.
Uma coisa que eu não sabia explicar, nem para mim mesma.
Então, sabendo disso tudo, o que eu estava fazendo? O melhor seria dar o
fora dali, mas para onde eu iria? Dormir na rua e morrer de fome? Teria que ficar com Ruggero por enquanto, e teria que manter meus pensamentos bem longe dele. Fui para a cama, usando apenas a calcinha improvisada e decidi que me manteria afastada de Ruggero o máximo que conseguisse.

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