Parte 58

58 7 1
                                    

Eu não disse nada.
Estava feliz por ele não ter se machucado tentando montar Storm só para me procurar. Isso não significava que tinha me esquecido de suas mentiras.
- Perdoe-me, Karol, eu jamais deveria... Eu agi sem pensar! Fui um imbecil outra vez. Mas é que as coisas que me disse...
- São verdadeiras! Todas elas. Eu nunca menti para você! Enfatizei, para que ele entendesse que alguém ali mentia.
- Eu sei disso, amor. Um arrepio percorreu meu corpo todo quando ele
disse a palavra de forma tão carinhosa. Tentei ignorar.
- Não pode imaginar o quanto lamento!
Queria muito acreditar que ele me amava, mas então por que não acreditou
em mim? Tudo bem que eu mesma tive dificuldades para aceitar a verdade no começo mas, ainda assim, eu esperava que ele já tivesse tido provas o suficiente de que eu era diferente de tudo ali....

Fiquei sentada na cama, tentando não olhar em seus olhos, eu sabia que, se não evitasse isso, minha resolução de ignorá-lo cairia por terra.
Notei, então, que sobre a mesinha de cabeceira onde eu tinha deixado o castiçal, havia uma bacia cheia de água e um pano ensopado.
- Pra febre? Perguntei indicando com a cabeça. Ruggero assentiu, o rosto muito sério. Ao lado da bacia, vi a ponta de um livro com capa de couro.
- O que é isso? Me estiquei para pegar o objeto, mas Ruggero foi mais rápido e o alcançou, me entregando logo em seguida.
- É um livro.
Tentei usá-lo para manter-me lúcido, mas não foi de muita ajuda, não consegui me concentrar em nada, pensei que eu fosse enlouquecer, Karol. Vê-la tão mal e ser incapaz de lhe ajudar... Foram duas
noites muito longas, mas parece que será útil afinal, já que você ficará na cama por um tempo.
Seu rosto ainda estava angustiado e mesmo eu estando furiosa com ele, não pude evitar querer confortá-lo.
Olhei para a capa de couro marrom novinha... Minha boca se abriu e acabei
deixando uma exclamação de surpresa escapar quando folheei algumas páginas. Era meu livro favorito Orgulho e Preconceito, em inglês, a primeira edição que eu tinha nas mãos.
- Caramba! Valeu, Ruggero! Isso vai me distrair.
Este é meu livro favorito da Jane Austen. Meu livro favorito no mundo todo!
Não pude deixar de sorrir para ele.
- Já o li umas duzentas vezes, o meu já está todo estropiado.
Observei o livro sob vários ângulos, revirei várias páginas e me surpreendi
com a encadernação firme e bem feita.
Seu rosto ficou cauteloso.
- Que foi? Perguntei.
- A autora deste livro não é conhecida. Ela o lançou anonimamente.
- Eu sei. Só muitos anos depois de sua morte a família resolveu dar o crédito que ela merecia.
- Como sabe disso? Perguntou desconfiado.
- Eu sei tudo sobre ela. É minha autora favorita. Este livro foi lançado em 1813, sob o pseudônimo By a Lady, assim como todos os outros, mas como eu disse, ela ganhará notoriedade daqui a alguns anos. Na minha opinião, ela é a melhor escritora de todos os tempos!
Ele apenas me encarou.
Ah! Chega!
Levantei-me da cama rapidamente e fui até a bolsa outra vez,
- A propósito, o que é isso? Eu disse, tocando o tecido branco do vestido horroroso.
- É uma camisola de dormir. Madalena a vestiu, ela não permitiu que eu ou Dr. Almeida fizéssemos isso.
- Ah! Dei de ombros. Estava tentando dar um gelo nele, mas quando me olhava daquele jeito, tornava tudo mais difícil!
- Toma. Estendi meu livro surrado e agora um pouco empenado por culpa da chuva. Enfiei-me na cama novamente.
O remédio ainda não tinha começado a agir.
- Veja você mesmo!
Ele observou a capa do livro, tão diferente da que ele acabara de me
entregar.
Uma fotografia de Elisabeth e Darcy. Ruggero abriu o livro e folheou algumas páginas. Sua boca caiu e seus olhos se abriram tanto que achei que pudesse saltar das órbitas.
- Já que você conhece a história, pode notar que está tudo aí, o Senhor Darcy, a Lizzy, Pemberley e tudo mais.
E está em português, como já deve ter percebido. Acho que a primeira edição traduzida saiu em 1950, mas não tenho certeza disso. Ele observava a primeira página com atenção.
- É um livro muito bom! Sabia que em 2000 foi considerado o livro mais bem escrito de todos os tempos?
Ele não respondeu, continuava a folhear o livro com olhos incrédulos.
Esperei para que pudesse colocar os pensamentos em ordem.
Então era para isso que o livro me serviria! Para provar que eu não estava
louca!
- É o mesmo livro? Perguntou depois de um curto silêncio, sua voz apenas um murmúrio.
- É. Concordei. Seus olhos encontraram os meus.
- Mas pode ser que você se contagiou com a minha loucura e começou a imaginar coisas também...
Encaramo-nos por um longo período.
Eu sabia o que ele estava pensando.
Mas isso é impossível! Da mesma forma que eu pensei quando cheguei ali e percebi que ele não estava brincando quando me disse que estávamos no
século dezenove.
- Mas... Ele começou, porém, não continuou.
O choque tão evidente em seu rosto o impediu de falar.
- Eu sei. Também não entendo como é possível, mas eu estou aqui!
Ele ergueu uma mão, hesitante, e, dessa vez, não me afastei.
Seus dedos quentes tocaram suavemente a lateral do meu rosto, inclinei a cabeça,
incapaz de resistir à sua carícia.
- Mas você é real! Ele exclamou, a voz intensa.
A intensidade de seu olhar derreteu meu ressentimento temporariamente.
- Tenho tentado me convencer disso todos os dias. Que você é real!
Sorri timidamente.
- Mas... como? Seu rosto fascinado, espantado e muito, muito confuso.
- Não sei, Ruggero. Eu realmente não sei. Te contei quase tudo o que sei.
Vi muitas dúvidas atravessarem seus olhos, o conflito sendo substituído
pela incredulidade.
- Como é possível? Ele sussurrou.
- Eu... Você é tão real! O que eu sinto... Sua mão desceu para meu pescoço, seu rosto se aproximou do meu num piscar de olhos.
Não recuei de seu súbito ataque.
Permiti que Ruggero me beijasse, fui incapaz de afastá-lo quando senti a fúria, o desespero, a paixão de seus lábios.
Meu corpo reagiu imediatamente e, de repente, era eu que o agarrava.
Claro que meu coração e minha respiração rapidamente se comportaram
como o esperado: o primeiro parecia uma escola de samba no ensaio final e
a segunda a, assustou com o batuque, e tentava fugir a qualquer custo, me
deixando sem ar.
- Perdoe-me, Karol. Ele murmurou sob meus lábios.
- Por favor, perdoe-me por ter sido tão estúpido!
- Tá!
- Eu fui um tolo! Como pude duvidar de sua história. Você é especial, eu sempre soube disso! Ruggero colocou as duas mãos nas laterais de meu rosto, sua boca ainda grudada na minha.
- Eu a amo tanto!
A convicção de suas palavras afugentou meu medo, meus receios de vez.
Ele me amava! É claro que me amava. Como pude duvidar disso?
Por que outra razão se daria ao trabalho de me procurar no meio daquela
tempestade?
Por que outra razão teria me trazido de volta para sua casa?
Por que me olharia daquela maneira se não me amasse?
Ele deslizou suas mãos grandes para minha cintura e senti o calor delas sob
a camisola.
Ruggero era melhor que os antitérmico. Muito melhor!
Esqueci da dor imediatamente, e por um momento, pensei que não seria capaz de parar de beijá-lo nunca mais.
No entanto, fui obrigada, assim que ouvimos passos se aproximando no
corredor, Ruggero me afastou gentilmente com um meio sorriso triste nos lábios.
Ele também não queria interromper o que estávamos fazendo.
Malena e Ana entraram no quarto. Souberam da minha melhora e queriam
mais noticias, na verdade, o remédio ou os beijos de Ruggero começavam a fazer efeito. Meu corpo doía menos.
A febre devia ter cedido.
- Estou bem! Não se Preocupem. Como foi o baile? Perguntei para as duas garotas, que trocaram um olhar conspiratório.
- Foi bom assim? Perguntei baixinho.
Elas sorriram e eu ri da cara de Ruggero, que claramente tinha detestado cada
minuto do baile.
- Podemos lhe contar tudo depois, agora você precisa descansar para se curar. Malena disse. Ela era tão madura para idade!
- Mas você está bem mesmo?
- Estou, já disse! Pare de se preocupar. Sempre me recuperei rapidamente
das doenças, e foi só um resfriado à toa.
Sua testa se enrugou.
- Não foi apenas um resfriado, Karol.
O Dr. Almeida realmente ficou alarmado com seu estado. Disse que talvez não conseguisse... Ela não terminou.
Seus olhos ficaram tão tristes quanto os de seu irmão.
- Ai, Malena! Que exagero! Acha que eu sou assim tão frágil? Vaso ruim não quebra fácil! Eu ri, tentando aliviar a tenção do quarto.
- Vaso ruim? Ana perguntou confusa.
- É, Ana. Já reparou? Se você tem um vaso raro, muito caro, uma relíquia, ele se espatifa só de olhar, mas se for um daqueles de loja barata.
Um vaso bem vagabundo, não quebra nem mesmo depois de arremessá-lo
contra a parede. Entendeu?
Ana assentiu, mas não acreditei realmente que tivesse compreendido.
- Fico feliz que esteja bem, senhorita Karol. Sorriu para mim.
Achei bacana que seu antagonismo parecia diminuir cada vez mais.
- Valeu, Ana! Também sorri para ela. Conversamos mais um pouco até o médico voltar com Madalena e a sopa. Tomei tudo sem reclamar.
Madalena ficou preocupada de verdade, de uma forma que me fazia lembrar de minha mãe.
Fazia muito tempo que ninguém cuidava de mim daquela forma.
Assim que terminei a sopa, me senti bem imediato.

Meu lugarOnde histórias criam vida. Descubra agora