Parte 36

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Eu não tinha intenção de sair do quarto, mas meu estômago se contorcia desconfortavelmente e me vi sem alternativas.
Fiquei surpresa ao encontrar Ruggero na sala, pensei que fosse me evitar depois do incidente embaraçoso em meu quarto e na estrada, fiquei ainda mais surpresa quando vi que havia mais cinco pessoas na sala de estar: Malena, Ana um casal mais velho e a garota que conheci no primeiro dia que fui à vila. Valentina sei-la-do-que.
- Senhorita Karol, que imenso prazer em revê-la! Valentina veio a meu encontro, piscando muito.
Sério, a garota tinha algum problema nos olhos?
- Estava agora mesmo perguntando para a senhorita Malena se nos daria o prazer de sua companhia. Completou, parando bem ao meu lado, inclinou-se ligeiramente e sorriu.
- Hã... Me desculpe, Valentina, eu estava...
- Eu estava explicando à senhorita Valentina que você não estava se sentindo bem esta noite. Ruggero interveio...
- Está melhor agora, senhorita Karol?
Não pude encará-lo, ainda estava muito constrangida com os eventos daquele dia desastroso.
- Estou. Respondi fracamente.
- Obrigada, estou bem.
- Fico feliz em ouvir isso. Malena colocou suas mãos no meu braço.
- Estava sentindo sua falta, Karol.
Maravilha! Mais uma pessoa que ficaria magoada quando eu fosse embora!
Valentina se aproximou do casal e se dirigiu a mim.
- Senhorita Karol, quero apresentar-lhe meu pai, Senhor Walter de Albuquerque, e minha mãe, Senhora Adelaide de Albuquerque.
- Prazer em revê-la, senhorita, vejo que encontrarmo-nos numa ocasião mais agradável desta vez.
Parece estar muito melhor do que quando nos conhecemos.
Sabia que já tinha visto aquele bigode antes! Era o homem de cartola na carruagem.
- E Valentina estava demasiadamente ansiosa para revê-la, parece que causou boa impressão, minha jovem.
- O prazer é meu, senhor, e causar é minha especialidade, Nina sempre diz isso. A Sofia causou geral! ela dizia com frequência, sempre que eu dava um ataque. Mais ou menos uma vez por semana.
Sorri ao pensar nela, estava com uma saudade louca da minha amiga.
Apenas eu ri, mais ninguém entendeu meu trocadilho, revirei os olhos e
suspirei.
- Bem... Malena percebendo o embaraço geral, tentou mudar de assunto.
- Espero que seu vestido já esteja pronto, senhorita Valentina. Certamente virá ao baile no sábado!
- Mas é claro, senhorita Malena. Já o encomendei, deve, ficar pronto amanhã. Estou muito animada com este baile, o ultimo ao qual fui convidada ocorreu no mês passado na casa de Marquês de Bourbon!
Ainda existiam os marqueses? Que máximo!
- E não foi um baile muito agradável. Disse sua mãe.
Notei de onde sua filha herdara a beleza, mesmo sendo mais velha ainda era uma mulher muito bonita.
- Alguns cavalheiros se excederam no uísque e tivemos que deixar o baile apressadamente.
- Sim, mamãe, eu me lembro. Mas os amigos dos Pasquarelli são mais respeitosos que os do marquês, creio que por ainda ser solteiro, sem uma boa esposa para guiá-lo no caminho certo o marquês acabou cercado de amizades inconvenientes.
- Oh, sim! Disse veementemente a Senhora Adelaide.
- Um homem sem esposa acaba perdendo seu rumo. Notei o olhar que ela lançou na direção de Ruggero.
- Valentina será uma esposa admirável. Foi muito preparada para isso.
Não concorda, Senhor Pasquarelli?
Que gentileza a dela! Oferecer tão sutilmente sua filha daquela maneira!
- Sim, Senhora Adelaide. Disse Ruggero, depois de pigarrear, ele também notou a oferta.
- Suponho que todo homem de bem precise de uma boa esposa ao seu lado, e o homem que escolher sua filha será um homem de muita sorte, certamente.
Valentina baixou os olhos, corando, um pequeno sorriso nos lábios.
Vi o constrangimento e a satisfação surgirem em seu rosto de boneca.
Aquilo ficava cada vez melhor!
Por que foi que eu saí do quarto mesmo?
Os dois homens iniciaram uma animada conversa sobre caça, ainda que eu não pudesse imaginar Ruggero atirando em qualquer coisa.
Valentina se sentou ao meu lado, ela não tirou os olhos de Ruggero, e sua mãe, de mim, eu não parava de pensar que aquela visita para me apresentar a seus pais era apenas uma desculpa e que, no fundo, Valentina e sua mãe queriam
investigar o que eu estava fazendo ali e o que Ruggero achava disso.
Adelaide parecia desconfiar de alguma forma e, na verdade os instintos dela estavam quase certos.
Falei pouco para não correr o risco de dizer asneiras, mas ouvi boa parte da
conversa das mulheres, coisas sem importância para mim: a família Borges
também adquiriu uma nova carruagem, o alfaiate brigou com o padeiro, e se negava a abrir a loja enquanto ele não retirasse a banca de pães da frente da sua porta. E falaram sobre fitas e vestidos, um assunto discutido muito animadamente.
Descobri que Valentina realmente estava apaixonada por Ruggero, a forma como olhava para ele, com adoração, com prazer, com constrangimento, deixava claro o que sentia por ele.
Não gostei dessa parte.
Vez ou outra Ruggero olhava em nossa direção e sorria, não pude ter certeza se
seus sorrisos eram destinados para a garota pequenina, delicada e inocente ao meu lado ou se para mim.
Valentina corou e baixou a cabeça toda vez que o viu sorrir, senti meu rosto esquentar também, mas não por
constrangimento.
Como ele se atrevia? Flertar com Valentina bem na minha frente?
E todas as coisas que me disse naquela tarde? E aquele beijo?
No entanto, assim que consegui recuperar o bom senso, pensei que talvez
fosse bom se ele se interessasse por ela. Valentina poderia ser uma ótima esposa e uma irmã muito atenciosa para Malena, dava pra ver que as duas tinham afinidade. Se bem que eu achava difícil Malena não gostar de alguém,
praticamente impossível.
Com o coração pesado, compreendi que talvez a vida dele seguisse esse curso se eu não tivesse simplesmente me transportado para aquele século e bagunçado sua vida, e eu queria que ele fosse feliz.
Valentina seria perfeita para ele, era linda apesar do seu pisca-pisca irritante, usava o vestido bufante sem parecer ter problemas, saberia como recepcionar os
convidados nas festas e jantares, saberia organizar a casa e os empregados.
Ensinaria Malena o que uma mulher do século dezenove precisaria saber e, quando conversasse com seus amigos, não os chocaria.
Eu era a pedra no sapato, não ela.
De repente, meu estômago se retorceu, a fome esquecida.
- Malena, se importa se eu for pro meu quarto? Estou com dor de cabeça e não serei uma companhia muito agradável para ninguém. Sussurrei.
- Ah! Que pena! Ela disse desanimada. -Quer que eu peça à Senhora Madalena para lhe fazer um chá?
- Não, obrigada. Eu só queria sair dali, o mais rápido possível!
- Espero que melhore logo, senhorita Karol. Valentina me disse, com os olhos sinceros.
- É uma pena não termos sua companhia no jantar...
Apenas assenti com a cabeça, não queria ficar perto dela nem mais um minuto. Por que, apesar de tudo, ela parecia ser uma boa garota, não queria acabar gostando dela e me sentindo uma vadia por interferir no seu destino.
Pois, diferente de Ana, Valentina parecia se importar com Ruggero, e eu não poderia odiá-la mesmo que tentasse. Ela era amável e gentil, a mulher certa
para ele. Meu estômago revirou outra vez.
Desculpei-me com os outros convidados e disparei feito um raio para meu quarto. Não olhei para Ruggero.
No entanto, quando eu estava na metade do longo corredor mal iluminado, ouvi passos pesados atrás de mim e me virei
para ver quem era.
Ruggero, claro, vindo ao meu encontro.
Andei mais rápido, tentando chegar ao quarto antes que ele pudesse me alcançar.
- Senhorita Sofia. Ele chamou à meia voz.
Por que me arrepia o corpo todo apenas ouvir o som de sua voz? Argh!
Não parei. Continuei mais rápido até quase estar correndo, ouvi seus passos se acelerarem também.
- Senhorita Karol. Ele repetiu mais firme.
Eu realmente corria agora, lancei-me para dentro do quarto como uma bola de canhão e rapidamente comecei a fechar a porta, mas Ruggero estava mais perto do que eu pensava, ele colocou o pé entre as portas, antes que eu pudesse fechá-las.
Tentei empurrar mais forte, usando todo o peso do meu corpo como apoio, esmagando seu pé, mas foi em vão. Derrotada e sem outra opção, desisti,
deixando as duas partes da porta se escancararem.
- O que você quer? Perguntei friamente.
- Quero falar com você. Exigiu.
- Acho que não é nem a hora e nem o lugar ideal para isso, pode falar comigo amanhã, agora volte para seus convidados e me deixe em paz!
Seus olhos ficaram tão tristes que meu coração se encolheu dentro do peito.
- Por que está fazendo isso? Perguntou, sua voz baixa e intensa.
Calafrios subiram e desceram por minha espinha.
- Não estou fazendo nada. Respondi petulante.
- Está fingindo que nada aconteceu. Que nada mudou. O brilho prateado em seus olhos castanhos me perturbava, por que ele tinha que me olhar daquele jeito?
- Por que me manda embora?
Fiquei parada apenas o encarando, sem saber bem como responder a sua pergunta.
- Karol. Ele sussurrou.
- Não sei o que você quer, mas basta me dizer e eu farei.
- Quero que volte para a droga do jantar. Minha voz subiu um pouco.
Minhas emoções tão confusas quanto meus pensamentos.
- Quero que volte e aproveite a companhia adorável da futura esposa perfeita! Quero que se divirta com os sorrisos inocentes de Valentina.
Quero que fique bem longe de mim! Quero que suma da minha frente! Tentei fechar a porta para que meu recado fosse ainda mais explícito, mas Ruggero não se moveu.
A última coisa que eu esperava ver em seu rosto era um sorriso, que se tornava cada vez maior conforme os segundos passavam.
- Você está com ciúme! Ele afirmou satisfeito.
- Eu? Ciúme? De você? Rá!
Tentei empurrá-lo para fora com a ajuda
da porta, mas ele era grande demais, forte demais.
- Pois eu penso que está. Seu sorriso enorme me irritou ainda mais, eu queria tanto quebrar seu nariz!
- Não dou a mínima pro que você pensa. Agora, por favor, saia. Você já invadiu meu quarto hoje! Por que não pode simplesmente me deixar em paz?
Usei toda minha força para fechar a maldita porta.
- Eu preciso lhe fazer uma pergunta?
Ele segurou facilmente a porta quando tentei fechá-la outra vez.
- Depois a deixarei em paz. Prometo.
Suspirei e desisti da porta, meus dedos doíam pelo esforço e eu não consegui mover Ruggero nem um único milímetro.
- Então, comece logo, estou cansada. Bufei derrotada.
- Lembra-se sobre o que conversamos esta tarde?
- Poderia ser mais específico? Falamos sobre muitas coisas.
Ele sorriu maliciosamente.
Argh!
- Certamente. Esta tarde você me disse que nunca assistiu uma ópera, não disse? Perguntou, com os olhos brilhando de entusiasmo.
- E daí? Tentei parecer indiferente, mas o assunto que ele escolheu realmente me pegou de surpresa.
+ Pois mandei Isaac comprar nossas entradas para a apresentação de amanhã à noite. Então, eu queria... Ter certeza de que não mudou de ideia depois de meu comportamento... Grosseiro.
- Grosseiro? Acho que dizer que se comportou como um animal seria mais adequado.
Minhas bochechas queimaram de vergonha com a lembrança de seu rosto abismado olhando meu corpo nu na banheira.
- Não imagina o quanto lamento por ter invadido sua privacidade daquela maneira, senhorita. O embaraço em sua voz espelhado em seu rosto.
- Não mais se repetirá, prometo.
- É mesmo? Por que tenho a impressão de que está fazendo exatamente a mesma coisa agora! Rebati cruzando os braços, sua boca se retorceu e sua testa se enrugou, ele ficou constrangido.
Constrangido e infeliz.
- Você está certa. E recuou um passo, deixando o caminho livre para que eu pudesse fechar a porta.
Não a fechei, entretanto.
Encarei-o por um tempo, seu rosto triste me impedia de bater a porta e seguia dentro do quarto.
- Então, irá comigo? Indagou inseguro, depois de um tempo em silêncio.
- Ao espetáculo? À ópera?
- Você e eu?
Ele estava brincado comigo?

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