Parte 64

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-  Onde estão minhas coisas?
- Tudo que me entregaram foi isto e aquele vestido estranho.
Ela levantou o celular.
- Ficou tudo lá com ele. Tudo! A dor me deixou quase cega, pontos negros embaçavam minha visão.
- Como foi com o Gaston? Perguntei,
tentando me distrair para não partir em duas.
- Foi maravilhoso! Bem, quase. Eu estava muito preocupada com você.
Não sabia o que tinha acontecido...
Te procuramos em hospitais e até em
necrotérios!
- Desculpe, Nina! Não dava pra te mandar um bilhete.
Acho que os correios ainda não fazem esse tipo de entrega. E sorri, secando os olhos com as costas das mãos.
- Sua maluca! Não podia se meter em nada menos complicado, pra variar?
Ela sorriu também.
- Ah! Nina! Estiquei os braços e a abracei bem forte.
- Estou tão feliz por você e o Gaston!
Ela me abraçou também.
Depois me olhou espantada.
- Está chorando? Não tinha percebido.
- É que eu... Não imagina como estou feliz por vocês dois! Serão tão felizes juntos! São perfeitos um para o outro.
- Já chega! Quem é você? Onde está minha amiga? Ela disse com a testa enrugada, depois sorriu.
- Você tem razão. Não vai acreditar em como eu mudei. Sou uma outra mulher. Uma que é romântica, chorona e melodramática. Tudo que eu nunca fui. Sou uma EMO!
- Claro que não é. Só está apaixonada.
Ela sorriu, depois seus olhos se
estreitaram.
- Pela primeira vez!
- Fala logo. Eu resmunguei.
- O que? Perguntou inocente.
- Eu te disse? Que tipo de amiga eu seria se tripudiasse de seu sofrimento dessa forma?
- Obrigada. Suspirei.
- Mas eu te avisei! É diferente de eu te disse.
Precisei fazer um teatro para o psiquiatra do hospital, inventado que tinha bebido demais e estava com stress de trabalho para poder justificar ter
pirado, saído na rua vestida daquele jeito, invadido lojas e agredido pessoas. Prometi procurar um psicólogo para me ajudar a aliviar o stress.
Ele até me deu o telefone de um especialista.
Saí do hospital com as roupas que Nina levou para mim, meu vestido e o celular estavam dentro na sacola de plástico.
Tive que suportar as piadinhas de Gaston durante todo o caminho até meu
apartamento.
Você estava doidona, hein, Karol?
O que você usou? Me arruma um pouco!
Não seja fominha. Divide o bagulho!

Entrei em meu apartamento e tudo estava exatamente como eu havia
deixado: de pernas pro ar.
Foi estranho entrar ali de novo.
Tanta coisa tinha mudado.
Eu tinha mudado. A sensação de estar em casa não existia mais.
Era apenas um apartamento.
- Tem certeza de que está bem? Nina perguntou pela milésima vez.
- Tenho! Pode ir. Vocês têm muito o que fazer agora. Eu disse, lhe dando outro abraço.
- Se precisar, me liga. A qualquer hora!
Assenti, mas eu precisava ficar sozinha um pouco. Queria botar os pensamentos em ordem, descobrir alguma pista de como encontrar a mulher.
Gaston não largou sua cintura em momento algum. Eu sorri. E depois ele me surpreendeu me abraçando.
Sufocando antes de sair.
- Se cuida, garota. Ele disse, antes de fechar a porta, já era noite.
Fiquei contemplando meu apartamento vazio. Tão vazio quanto eu.
Tudo que era meu ficou com Ruggero minha bolsa com meus documentos, meu livro, minha nova família, meu coração, minha alma.
Peguei o vestido e o aproximei do rosto. O cheiro dele ainda estava impregnado no tecido. Respirei fundo, deixando seu aroma inundar minha cabeça.
A única lembrança concreta que restou. A única coisa que me fazia crer que eu não tinha imaginado tudo.
Que ele era real. Que o que vivemos foi real.
Ficava cada vez mais difícil acreditar nisso, estando ali no apartamento repleto de geringonças modernas.
Tomei um banho para me livrar do terrível cheiro de hospital, sem me
importar com o chuveiro ou a privada. Não senti o alívio que imaginei que
sentiria ao entrar num banheiro outra vez. Nada mais importava.
Embrulhei-me com a toalha e fui pro quarto, incapaz de me conter por mais
tempo. Deixei-me cair num canto e não impedi as lágrimas nem a dor dilacerante que rasgou meu peito me tirando o fôlego, nem fui capaz de
conter o tremor que se espalhou por meu corpo.
Fechei meus olhos e abracei meus joelhos.
Repassei mentalmente cada instante que vivi com ele, como um filme.
Ao menos, eu tinha isso.
Ao menos, eu tive isso.
Um amor tão profundo e sincero, mesmo que por poucos dias, que muitas pessoas jamais experimentam durante uma vida
inteira.
Eu tinha Ruggero pra sempre, guardado em minhas lembranças.
Cada traço de seu rosto, cada expressão de seus olhos negros, cada sorriso divertido, cada linha de seu corpo perfeito. Até seu cheiro estava presente em minha memória e fazia meu corpo se arrepiar toda vez que pensava nele.
Quando dei por mim, o sol já batia na janela e eu ainda estava ali, sentada no chão, tremendo. A luz clareou o quarto e também minha cabeça.
Eu tinha que fazer alguma coisa.
Não podia ficar ali parada e chorando.
Não podia viver apenas de lembranças. Eu queria mais!
Eu iria lutar!
Não fui trabalhar naquela sexta-feira. Não me importava como eu pagaria o
aluguel.
Eu tinha que encontrar a tal mulher. Pensei em pesquisar na internet para descobrir informações sobre ela, mas eu nem mesmo sabia o seu nome.
Peguei meu carro e rodei pela cidade, entrando em todas as lojas que vendiam celular, sentindo o desespero me dominar a cada “não”.
Ninguém nunca ouviu falar dela. Procurei o dia todo em vão.
Claro que ela não deixaria rastro depois do estrago que fez.

Nina bancava a detetive virtual, procurava na internet casos de pessoas que diziam ter viajado no tempo, mas sem encontrar nada concreto.
Procurei por ela durante dias, até mesmo nas cidades vizinhas, até em delegacias.
Nunca havia nada. Nada de nada.

Uma semana depois, mudei meus planos. Pensei que a vendedora talvez fosse uma daquelas bruxas que faziam magia. Procurei nas páginas amarelas e visitei cada buraco que pude encontrar o endereço.
Numa dessas incursões, fiquei tentada a me deixar levar depois da minha viagem ao passado, não havia mais muita coisa em que eu não acreditasse.
Dentro de uma sala minúscula e repleta de incensos, cristais coloridos e tecidos, a cigana Odara tentou me convencer de que sabia de alguma coisa.
- Você está aflita. Ela afirmou.
- Sim. Confirmei. Mas isso era evidente, então não me surpreendi
- Vejo que tem assuntos mal resolvidos no passado. Ela disse, com a ponta dos dedos pressionados contra as têmporas observando uma bola transparente que soltava faíscas azuis.
- Tenho.
- Um homem. Ela continuou.
- Que você ainda a...
- É. Eu disse empolgada.
- Você o quer de volta. Por isso está aqui.
- Sim. Confirmei. Afinal, o motivo para encontrar a vendedora era para que ela me levasse até Ruggero outra vez, não era?
- Posso fazer isso pra você. Posso trazê-lo de volta em três dias.
- Como?
- A magia de cigana Odara é muito poderosa. Custará 300 reais.
- Trezentos? Não que não valesse à pena. Se funcionasse, claro.
Mas eu tinha que me certificar de que ela não era uma espertalhona.
- Que garantias eu tenho de que está me dizendo a verdade?
Ela estreitou os olhos verdes carregados de maquiagem.
- Cigana Odara não mente. Cigana Odara é poderosa. Era tão irritante que se referisse a si própria na terceira pessoa!
- Tá, mas me dá mais alguma coisa. Mais informações.
- Muito bem. Ela disse pressionando a testa outra vez.
- Ele é bonito e educado. Até aí tudo certo.
- Te amava muito. Meu coração começou a bater forte com a esperança.
- Mas não foi capaz de resistir à tentação. A culpa foi da outra.
Murchei.
- Outra? Repeti desanimada.
- A outra mulher. Pela qual ele te trocou.
O complicado de se procurar em lugares místicos é que alguém sempre tenta te convencer e eles sabem exatamente o que você procura.
Depois de cigana Odara, tomei mais cuidado, prestando atenção nas frases,
quase todas generalizadas: Você está infeliz. Vejo que esta procurando alguém, tem um homem no seu destino, posso trazê-lo de volta por duzentos.
Cem.
Cinquentinha e não se fala mais nisso! Mas, na última espelunca em que me atrevi a entrar, me surpreendi.
Primeiro, por não se tratar de uma espelunca, mas de uma sala agradável, branca com diversas velas coloridas e algumas imagens de santos.
A segunda surpresa foi Mãe Cleusa não querer me oferecer seus serviços, apenas respondeu que não conhecia nenhuma outra vidente com as características que eu descrevi a ela.
Mas a grande surpresa aconteceu mesmo quando eu estava de saída.
Depois de me dizer para seguir em paz, os olhos de Mãe Cleusa tremularam e ela ficou diferente, como se não estivesse ali na sala. Fiquei imóvel.
Segundos depois, ela sacudiu a cabeça e piscou.
- Ele está te esperando.
- O que? Perguntei insegura.
- Ele está te esperando. Não desistiu de você. Está esperando que você volte.
- Está? Senti meus olhos ficarem úmidos.
- Ele está infeliz. Tanta dor! Ela disse fazendo uma careta, como se sentisse dor.
- Ele te ama muito, menina.
- Eu sei. Eu também o amo. Demais! Respondi em meio as lágrimas.
Ela podia estar inventando, mas ouvir aquilo era um alívio.
Ele me amava.
Ele existia!
- Vê mais alguma coisa, Mãe Cleusa?
- Um quadro. Ele fica parado olhando para um quadro.
- Um quadro? O quadro que ele estava pintando? Meu quadro?
- É tudo que eu vejo, me desculpe.
E sacudiu a cabeça,
- Por favor, Mãe Cleusa, não dá pra ver mais nada? Nós vamos nos encontrar outra vez?
- Não posso ver mais nada, menina. Mas vejo uma flor azul no seu futuro.
Significa alguma coisa pra você?
- Não. Não imagino o que possa ser.
Ela me abraçou, em seguida colocou a mão sobre minha cabeça, fez uma oração e disse que pediria aos orixás para que me ajudassem.
Naquele instante, me senti em paz.
Mas a paz não durou muito tempo. Apenas algumas horas e eu estava de
volta ao desespero e agonia habitual dos últimos dias.

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