Parte 59

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O médico tocou minha testa mais uma vez e suas sobrancelhas se arquearam. Sorri um sorriso de “não te disse?” para ele. Seus olhos voaram para a cartela de remédio sobre a mesa,
- Bem, parece que funciona rapidamente! Então... Ele parecia não saber o que fazer já que a gosma preta não seria de nenhuma utilidade.
- Tome muito líquido e repouse até que a febre cesse de uma vez.
- Beleza, doutor. Eu não iria discutir com ele que não era necessário ficar deitada para o resfriado acabar. Na verdade, me sentia cansada mesmo tendo dormido dois dias inteiros. Um pouco mais de cama não faria mal.
- Acho que amanhã estarei pronta pra outra.
- Realmente espero vê-la melhor. Você me deu um susto, minha jovem. Um sorriso sincero.
- Virei visitá-la amanhã de manhã.
- Tudo bem.
O médico se despediu de todos, recebeu os agradecimentos fervorosos de Ruggero com um sorriso satisfeito no rosto, depois fez uma reverência e partiu.
Fiquei mais tranquila depois disso.
As garotas saíram do quarto a contragosto.
Praticamente foram enxotadas por uma Madalena preocupada que também pudessem adoecer, Ruggero se recusou veementemente a me deixar.
Alegou que estava ali desde que eu
adoecera, se tivesse que ficar doente já teria ficado e que o risco não o preocupava. Ele deixou muito claro que não sairia do meu lado por razão alguma.
No entanto, não ficamos totalmente “sozinhos”. A cada minuto, um empregado aparecia com um suco, ou um chá, ou apenas para saber se eu
estava bem.
Madalena devia ter percebido nosso envolvimento, imaginei que Ruggero não tivesse se preocupado em esconder nosso relacionamento enquanto eu ardia em febre.
- Então... Ruggero começou quando ficamos sozinhos outra vez.
- Como é o futuro?
Não pude deixar de sorrir da curiosidade latente em seus olhos.
- É muito diferente disso aqui, mais simples em alguns aspectos, mais
complicado em outros.
Tem suas vantagens, mas também desvantagens.
- Como o que? Perguntou divertido.
- Como se locomover, por exemplo. Imagine uma carruagem sem cavalo,
movido por um tipo de máquina a óleo e que anda muito rápido, com um desses, chegaríamos à cidade em uns trinta minutos.
- É mesmo? Sua testa vincada.
- Dependendo do motor, pode ser até mais rápido!
Expliquei mais detalhadamente sobre os carros, sobre o metrô, as motos, os aviões. Ele sempre tinha uma pergunta sobre tudo, principalmente sobre o
avião. Ficou fascinado que realmente pudesse voar e acabou um pouco
decepcionado quando eu não soube responder como tanta ferragem podia
realmente flutuar no céu.
Revelei a ele como era a vida das pessoas, sempre corrida com tantas
obrigações que mal sobrava tempo para diversão, e quando ele me perguntou como eram as pessoas no futuro e eu disse: “São assim como eu.”, ele gargalhou alto e respondeu.
“Então deve ser muito conturbado por
lá." e eu corei porque, na verdade, ele não errou muito.
Narrei a ele como eram as mulheres em meu tempo, ele ficou horrorizado ao saber que mulheres também usavam calças, que dividiam a conta no restaurante, que muitas delas eram as provedoras financeiras de suas casas.
Falei também sobre os homens e suas roupas, o futebol da quarta-feira, a cerveja do fim de semana, como flertavam com as mulheres.
Dessa vez, foi ele quem corou.
Contei sobre os filmes, as peças de teatro, as música que eu gostava.
Ruggero pareceu gostar e tentei muito explicar a ele como eram os shows de rock, mas envolvia muita coisa que ele não conhecia. Fiz o melhor que pude, contudo, acho que ele não entendeu direito.
Falei sobre a comida e o quanto eu sentia falta do gelado: bebida, sorvete, sobremesa e contei sobre o disk-pizza, sobre lojas de departamento, computador, meu emprego.
Expliquei quase tudo que achei relevante, desde utensílios domésticos, como a cafeteira elétrica, até sobre coisas mais banais, como acender uma lâmpada. Ruggero parecia fascinado com tudo. E eu fiquei feliz por ele não me olhar mais como se eu fosse uma maluca.
Precisei interromper minha aula sobre o futuro, já que Madalena e alguns
empregados apareceram com vários baldes de água para o meu banho.
Ruggero não queria sair do quarto, estava preocupado que eu pudesse precisar de ajuda.
- Mas eu ficarei aqui com ela, patrão. Vá jantar com sua irmã. Já é tarde!
Madalena o persuadiu.
- Pode ir, Ruggero. Eu to bem. Assegurei a ele, vendo a dúvida em seus olhos.
Ele me deu um beijo na testa, sem se importar com a presença de Madalena
e saiu, claramente insatisfeito.
Não deixei de notar o olhar de desconfiança que ela lançou para ele.
Madalena ficou ali para me ajudar, mesmo quando insisti que não era
necessário. Ela evitou me olhar enquanto eu tirava a roupa e depois me ajudou a sair da banheira.
Vesti a camisa manchada de Ruggero.
Já começava a escurecer e eu logo
acabaria dormindo de toda forma.
Ela não gostou muito, nada para dizer a
verdade, minhas pernas ficavam muito expostas, mas, como eu não tinha
muitas outras opções, acabei convencendo-a que ficaria debaixo dos
lençóis, que ninguém veria nada e ela acabou cedendo.
Sentei-me na cadeira em frente ao espelho porque ela insistiu em pentear
meus cabelos.
Entretanto, foi gostoso, como se eu tivesse seis anos outra vez. Isso me fez lembrar de meus pais de novo.
Fazia muito tempo que eu não tinha tantas pessoas em minha vida.
Como uma família outra vez.
- Acho que o patrão não deve ficar aqui esta noite, senhorita. Agora que está consciente, as pessoas podem pensar mal. Ela disse, ainda escovando meus cabelos.
- Não me importo com isso, Madalena.
Ela ficou em silêncio por um tempo.
- O problema, senhorita Karol.
Ela começou cautelosa.
- É que acho que ele está muito... Interessado em sua pessoa. Eu ri. -Também acho, Madalena. Sua testa se enrugou.
- Mas Ruggero é um cara especial. Jamais faria qualquer coisa que eu não quisesse.
Ela não ficou muito satisfeita com minha explicação. Talvez desconfiasse de mim também.
- Fique tranquila. Eu sei me cuidar!
Relutante, Madalena acabou nos deixando sozinhos, mas pela expressão de seu rosto antes de deixar o quarto, imaginei que receberia uma visita
durante a madrugada, só para saber se, de repente, eu não precisava de um
chá!
Ruggero se sentou ao meu lado encostando as costas na cabeceira da cama, e eu, cansada, me arrastei até ele. Descansei minha cabeça em seu peito, sua mão brincava gentilmente em minhas costas. Estava tão confortável daquele jeito, tão “em casa” que não demorou muito para que eu ficasse sonolenta.
- Acredito que a Senhora Madalena irá me passar um sermão se nos flagrar abraçados desta forma. Pude ouvir zombaria em sua voz.
- Posso apostar!
- Talvez ela não venha pessoalmente.
Talvez mande algum empregado para nos vigiar.
Levantei minha cabeça para observá-lo. Seu rosto estava brincalhão
- Muito bem! Parece que finalmente aprendeu a tratar seus empregados
com mais dignidade. Eu disse, tentando não sorrir de sua careta. Depois voltou a ficar sério.
- Você me fez enxergar muitas coisas, senhorita! Tocou uma mecha de meu cabelo e a colocou atrás da orelha.
- Por falar nisso, quero te fazer uma pergunta.
- O que quiser. Ele respondeu de imediato.
-Por que você pensou que eu fosse uma “senhorita” quando nos conhecemos? Por que não pensou que eu pudesse ser uma “criada”? Isso me intrigava há vários dias, mas sempre acabava me esquecendo de perguntar a ele.
Ruggero riu, fazendo meu corpo sacudir um pouco.
- Bem, soube que você era uma senhorita porque uma criada jamais seria tão petulante e teimosa com um cavalheiro. Seus olhos brilhavam de diversão.
- Eu não fui petulante. Nem teimosa Retruquei ofendida.
- Ah, não. Nem um pouco! Como foi que disse? Ah! Precisa mesmo me apertar tanto? Ele me imitou, seu sorrio exibiu os dentes brancos e perfeitos.
- O que você queria que eu dissesse? Eu nem te conhecia e você já estava cheio de dedos pra cima de mim! Apenas estava me defendendo.
- Certamente! E depois levei uma eternidade para conseguir convencê-la
a aceitar minha ajuda, uma criada não hesitaria. Ele tocou meu rosto com delicadeza, deslizou os dedos de minha têmpora até meu queixo.
- E, assim que vi seu rosto, eu soube que não se tratava de uma criada, mas sim
de uma princesa.
Revirei os olhos e deitei a cabeça em seu peito outra vez. Ruggero sabia como me enrolar direitinho.
Eu já não sentia mais raiva dele. Como poderia? Ficamos deitados assim por um tempo, Ruggero acariciando meus cabelos e a luz fraca e tremulante das velas me compeliam a fechar os olhos.
- Karol? Ruggero chamou quando eu estava quase apagando. Sua voz baixa
no quarto mal iluminado parecia uma cantiga de ninar.
- Humm. Respondi meio mole, sem abrir os olhos.
Ele hesitou por um instante.
- Ainda me odeia? Sussurrou.
Sorri com os olhos ainda fechados.
- Muito! Resmunguei, me apertando mais contra seu peito.

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