Parte 1

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Eu sabia que devia ter voltado pra cama assim que saí de casa e tentei
pegar um táxi, era dia de rodízio.
Eu devia ter voltado pra baixo dos meus lençóis assim que aquele motorista idiota passou rente ao meio fio e literalmente ensopou meus jeans dos joelhos pra baixo.
Eu devia ter voltado!
Mas, em vez disso, respirei fundo e o insultei por uns dois minutos com todos os palavrões que eu conhecia. Ignorei claro, os pedestres que me atiraram olhares reprovadores.
Não ficou melhor quando cheguei, vinte minutos atrasada no escritório e o imbecil, rechonchudo e desalmado do meu chefe me fuzilou com os olhos e depois disse com desdém:
- Além de chegar atrasada, você ainda aparece aqui usando essa roupa
imunda? Você devia se vestir um pouco melhor, Sevilla, com o salário que
eu te pago...
Ah, sim. QUE SALÁRIO!
Eu mal conseguia pagar minhas contas em dia. Trabalhava naquela empresa desde o estágio na faculdade.
Depois que me formei, acabei sendo
efetivada e, como não apareceu coisa melhor, me acomodei um pouco.
Além disso, eu tinha um plano: Gary já estava esperando sua aposentadoria e eu tinha grandes chances de substituí-lo. Claro que, antes, teria que passar pela provação de suportá-lo até que isso acontecesse.
- Eu sei, Seu Gary. comecei.
- Mas acontece que um motorista
idiota passou...
- Ah! Chega de desculpas, já estou farto delas. Acha mesmo que eu acredito em suas histórias? Não entendo por que ainda não te demiti! Ele arqueou uma sobrancelha desafiadoramente.
Porque eu sou a mais competente de todo este prédio, seu porco arrogante!
- Me desculpe. Vou pra minha mesa agora mesmo pra compensar o
atraso, está bem? E sem esperar por mais um de seus ataques, marchei em direção à minha mesa, espiando sua reação pelo canto dos olhos.
Gary ficou parado me encarando por um momento, bufou e depois saiu
resmungando.
Tentei dissolver a pilha de papéis acumulada em minha mesa o mais rápido que pude, era uma pilha considerável, mas eu era realmente eficiente e terminaria tudo bem rápido.
No entanto, perto da hora do almoço, meu computador travou e depois
apagou completamente.
Tentei religá-lo, mas nada aconteceu. Estava morto!
Bati algumas vezes na máquina tentando fazê-la voltar a vida através de tortura, mas nem uma luz acendeu.
- Preciso desses papéis na minha mesa até as cinco! Gary urrou da porta.
Devia ter visto meu embate com a máquina.
- Eu sei! Mas não é culpa minha se o computador pifou. Como posso fazer todos os contratos sem o computador?
Ele sorriu ironicamente e apoiou uma mão na porta.
- Como fazíamos antes de inventarem essas máquinas complicadas que sempre deixam a gente na mão.
Olhei pra ele sem compreender, do que diabos aquele homem estava falando?
Gary notou minha expressão cética, imaginei, e acrescentou
- É claro que você sabe que os computadores nem sempre estiveram aqui, não é? Ele disse lentamente, como se eu fosse uma débil mental.
Grrrr!
- Claro que eu sei!
Eu preciso deste emprego! Não adianta nada pular no pescoço dele e estrangulá-lo! Repeti para mim mesma várias vezes. Contudo, não me convenci inteiramente.
- Então, mãos à obra, Sevilla. Você tem até as cinco. A máquina de datilografia está no armário do almoxarifado, ela não trava, não dá pau, o cartucho não acaba... Você vai gostar! É muito eficiente. Dá até saudades do tempo em que o escritório era preenchido pelo barulho dos botões.
Um sorriso cínico apareceu em seus lábios. Um sorriso que dizia você não
vai conseguir!
Vamos ver, careca!
Fui buscar a tal máquina, era pesada e desajeitada para carregar.
Coloquei-a sobre minha mesa e observei. Hummm... Eu já tinha ouvido falar sobre ela. Mas cadê o botão pra ligar?
Experimentei uma tecla qualquer.
Tec. Tec, tec, tec, tec, tec, plim!
Plim? Será que eu quebrei esse troço?
Ai, meu Deus! Só me faltava essa!
Ana, que ria alto, provavelmente da minha cara de pânico, saiu de sua mesa, duas atrás da minha e veio ao meu socorro.
Ela era a funcionária mais antiga da empresa, certamente chegou a trabalhar com a coisa pré-histórica.
- Karol pare de olhar para a máquina com essa cara! Ela disse, empurrando os óculos marrons com o dedo indicador.
- Isso não é um objeto alienígena.
- Não. Concordei.
- Se fosse, eu provavelmente saberia como usar, o problema é que...
Eu estava mesmo com medo daquela máquina barulhenta cheia de tecs e plins, mas precisava terminar meu trabalho.
Bem... Eu já vi uma dessas uma vez no museu da tecnologia, mas...
- Você não sabe usá-la.
Concluiu, ainda rindo, suas bochechas vermelhas.
As minhas também deviam estar vermelhas, mas de vergonha.
Não existia programa algum de computador que eu não soubesse utilizar, sempre aprendia rapidamente assim que um novo aparecia, mas aquela máquina robusta...
- Eu nem sei ligar essa coisa! Sussurrei. Algumas pessoas nos observavam com olhos curiosos.
Ana explodiu outra gargalha e quase todos no escritório voltaram sua atenção para onde eu estava, devo ter ficado roxo berinjela!
- É bem simples, Karol, você coloca o papel aqui.
Pegou um papel em branco, enfiou numa fenda e depois girou um botão enorme na lateral da coisa. Rec, rec, rec, rec. -Depois prende com isso. Ela ergueu uma pequena e fina haste metálica, encaixou a folha e depois soltou a haste, prendendo o papel.
- E pronto!
- Ah! Parece fácil!
Ana não pareceu acreditar muito na minha convicção, voltou para sua mesa sacudindo levemente a cabeça, erguendo os óculos grandes para poder enxugar as lágrimas dos olhos, que bom que pelo menos ela estava se divertindo!
Concentrei-me na máquina.
Experimentei digitar com certa cautela, e percebi que nada saia no papel.
- Precisa apertar com mais força. Ana gritou, ainda me observando.
- Tem que fazer tec.
Tentei outra vez Ah! Deu certo, as letras apareceram no papel.
Digitei, datilografei algumas linhas, meio desajeitada, e parei.
Observei o teclado atentamente, e não.
Não estava lá.
- Ana, onde fica o delete? Ela ergueu as sobrancelhas e abriu ligeiramente a boca.
- Como? Perguntou como se eu estivesse falando em japonês.
- Não tem delete! Eu errei um número e não tô encontrando a tecla delete
em lugar algum!
O escritório todo explodiu em uma gargalhada estrondosa, me deixando
com vontade de me enterrar debaixo da papelada que estava à minha frente.
Urgh!!!

Passei a tarde inteira tentando organizar a pilha de contratos, depois de
receber uma rápida aula sobre como usar a máquina antiquada.
Entretanto, o serviço não rendeu muito já que a máquina era muito lenta, ou talvez fosse minha falta de habilidade com ela.
Como as pessoas conseguiram viver sem o computador por tanto tempo? Pensei. Levaria dias para que eu conseguisse colocar em ordem os meus e-mails, minha conta no Facebook e, provavelmente não conseguiria ler todas as postagens no Twitter.
Teria que fazer isso assim que chegasse em casa, ficar sem internet era como se eu deixasse de existir, não fizesse mais
parte do mundo, completamente isolada virtualmente!
Saí do escritório um pouco depois das seis, com a cabeça estourando de tantos tecs e plins e recs, mas não sem antes ligar para o técnico e fazer com que me prometesse entregar meu computador no dia seguinte. Na primeira hora!

Peguei um táxi e, assim que entrei na avenida abarrotada de carros, ônibus
e pedestres que insistiam em atravessar fora da faixa, me arrependi.
Entretanto, não havia o menor perigo para os pedestres, pelo menos não naquela hora, com tudo absolutamente parado como estava.
Provavelmente eu poderia chegar em casa mais depressa se tivesse ido a pé também.
Mal entrei em meu apartamento e me lembrei de que precisava encontrar
uma boa faxineira. Com urgência!
Nada estava onde deveria estar.
Roupas jogadas por toda a mobília, canecas e copos espalhados pela superfície de quase tudo, pilhas e pilhas de papéis amontoadas desordenadamente em cima da mesa de jantar. O apartamento estava ficando pequeno pra tanta bagunça.
Joguei as chaves e a bolsa sobre a mesa entulhada e fui tomar banho.
Deixei a água quente escorrer por meu pescoço e minhas costas esperando
relaxar. E relaxei um pouco, na verdade. Vesti meu pijama e me joguei no sofá, procurando algo para me distrair enquanto meu jantar girava dentro
do micro-ondas. Não encontrei nada na TV, então liguei meu mp3 e abri meu livro favorito. Meu livro “livro”, com capa e folhas de papel e tudo mais.
Não em meu e-reader.
Eu tinha vários livros eletrônicos, inclusive armazenados no celular, mas este livro em especial eu simplesmente não conseguia ler de outra forma que não fosse a tradicional.
Ele tinha minhas páginas preferidas marcadas por orelhas e estava todo esfrangalhado por já tê-lo lido tantas vezes. Eu não sabia explicar por que gostava tanto daquele livro, mas era incrível poder me perder em séculos passados, costumes tão diferentes, roupas tão lindas, paisagens bucólicas e tranquilas, o amor sendo posto à prova pela ideia retrograda de que pobres e ricos não se misturavam, o cavalheirismo, a delicadeza do primeiro amor... Glicose da boa!
Realmente não sabia explicar o motivo já que eu não era uma romântica incorrigível, mas eu adorava aquele livro. E ficava meio difícil me perder no século dezenove se estivesse lendo em um e-reader!
Senti as juntas de meus dedos doerem quando terminei meu jantar.
Seria um alívio nunca mais precisar daquele trambolho centenário outra vez, pensei, enquanto jogava os pratos e talheres dentro da lava-louças.
Meu celular tocou.
- Você vai sair amanhã? Inquiriu a voz antes mesmo que eu conseguisse dizer alô.
- Oi pra você também, Nina. Como foi o...
- Você vai, não é? Ela me interrompeu apressada.
- Não vai me enrolar outra vez, Karol. Você sempre acaba arranjando uma desculpa pra não sair de casa.

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