Parte 22

60 6 2
                                    


- Bem, se mudar de ideia...
- Não mudarei. Mas obrigado por sua preocupação com minha... situação.
Ele voltou a encarar Storm.
Ficamos ali, os dois olhando para Storm. Eu podia jurar que seus pensamentos estavam tão longe daquele cavalo quanto os meus.
- Com fome? perguntou depois de um tempo.
- Aprende uma coisa, Ruggero, eu sempre estou com fome! sorri, tentando aliviar o clima. Deu certo. Ele sorriu de verdade.
- Vamos ver o que a Senhora Madalena nos preparou então.
Uma das coisas que descobri sobre a comida de 1830 é que não era necessário tirar a casca das frutas.
Não havia agrotóxicos.
Descobri também que não existia nada gelado, talvez num dia muito frio de inverno, mas não era esse o caso agora, já que não existia geladeira. O cardápio era à base de carnes e gordura animal, meio pesado. Senti muita falta da pizza
de domingo.
Passei o resto da tarde na companhia de Malena e Ana, participei pouco da conversa.
Eu tinha a impressão de que Ruggero não queria que eu dissesse tudo o que pensava a Malena.
Fiquei espantada com a postura das garotas, elas se sentavam tão eretas que minhas costas doíam só de olhar, minha mãe teria gostado disso.
Endireite os ombros, Karol, ela disse durante toda a minha adolescência,
mesmo percebendo que não surtia efeito algum.
Os movimentos delas eram tão graciosos, tão meticulosamente delicados, que acabei me sentindo um ogro desajeitado.
Eu nunca, em toda minha vida, ouvi as palavras “delicada” e “Karol” usadas numa mesma frase.
Geralmente era desajeitada, atrapalhada,
desatenta acompanhadas por Karol. Essas sim, ouvi milhares de vezes.
Contudo, nunca dei muita importância, porque nunca me vi cercada de pessoas que faziam do ato de se sentar praticamente um balé.
E lá estava eu, afundada na poltrona como sempre, enquanto as duas pareciam se equilibrar na beirada do sofá. Tentei copiar a postura de Malena mas desisti depois de uns quinze minutos. Meu corpo já tinha memorizado a postura: encoste as costas no sofá, solte os ombros e se afunde, cruze as pernas. Cruzar os braços em caso de irritação ou frio. Por mais que tentasse copiá-la, aos poucos meu corpo voltava à posição despojada.
Eu não pertenço a este lugar.
Se elas se comportassem do mesmo modo em 2010, seriam taxadas de esnobes, tentei me convencer disso, mas não funcionou muito.
Os movimentos delicados que Malena fazia para bordar um pequeno pedaço de tecido eram mais graciosos que qualquer gesto que eu pudesse fazer.
Pensei que as mulheres acabaram ficando sem tempo para detalhes como esse.
Depois do jantar fui até a cozinha falar com Madalena
- Eu queria te pedir um favor, Madalena.
- O que quiser, senhorita Sofia.
- Por acaso, não teria um pedaço de tecido sobrando por aí?
Notei a curiosidade em seu rosto.
- Algum tecido velho que eu possa usar para fazer uma... Coisa.
- Na verdade, tem sim.
Sempre precisamos de tecidos para fazer alguns remendos num lençol ou em uma roupa. Precisa de quanto?
- Ah, só um pedaço pequeno basta.
- Vou pegar meio metro então. E me fitou com suspeita.
- É mais que o bastante! Também vou precisar de tesoura. Acrescentei.
- Claro. Ela se inclinou ligeiramente. -Voltarei num instante.
Madalena me entregou o tecido bege e uma tesoura de ferro muito pesada.
Corri para meu quarto, estiquei o tecido sobre cama.
Procurei a caneta em minha bolsa, peguei minha calcinha, minha única calcinha, e a coloquei sobre o tecido. Risquei em volta da parte da frente, depois da parte de trás, sem interromper o desenho. Tracei fitas de dois dedos de largura nos dois desenhos.
Peguei a tesoura e comecei a recortar.
Meu Deus! Como é pesada!
Também pudera, parecia feita de metal fundido.
Puxei algumas linhas soltas quanto terminei e provei, parecia mais um
biquíni de amarrar muito mal feito que uma calcinha, o tecido não era de lycra, claro, então facilitava muito ter as tiras para o ajuste.
Só esperava que não desfiasse muito!
Claro que eu já tinha usado roupas sem nada por baixo.
Mas sempre com roupas justas, onde a calcinha marcava e deixava o visual meio cafona. Era diferente estar tão à vontade com aquele vestido rodado que podia se inflar como um balão a qualquer sinal de vento.
Melhor garantir.
Dobrei o resto de tecido sobrou mais que a metade e o guardei dentro da cômoda de madeira escura que combinava com a cama. Nenhuma das gavetas estava ocupada. Deixei a tesoura no aparador ao lado da banheira.
Dessa vez, assisti o preparo de meu banho. Achei engraçado vários
empregados com baldes cheios de água indo e vindo, Madalena com um
balde enorme cheio de água escaldante tomando cuidado para que o pano
que protegia sua mão não escorregasse. Tudo muito complicado para uma
ação que eu estava acostumada ser tão simples.
- Gostaria que eu voltasse depois para pegar seu vestido para ser lavado,
senhorita? Madalena perguntou, prestativa como sempre.
- Será que ele secará até amanhã? bem que estava precisando ser lavado.
Eu o estava usando há dois dias!
- Vou precisar dele para ir até a vila amanhã.
- A noite está bastante quente. Acho que secará a tempo.
Fechei a porta e tirei o vestido. Quando o entreguei a ela, notei seu rosto vermelho.
- Madalena, você não precisa ficar envergonhada. É uma mulher também.
Ela assentiu, e, mais depressa do que eu imaginei que fosse possível, saiu do quarto.
Descobri que o conteúdo do vidro âmbar era algo parecido com xampu.
Na verdade, mais parecido com detergente de cozinha que xampu, mas fez bastante espuma e pareceu limpar bem minha cabeça.
No entanto, deixou meu cabelo um pouco espigalhado, não encontrei condicionador.
Depois de me vestir com alívio, com minhas próprias roupas, saí para procurar por Ruggero. Entretanto, não foi necessário, ele estava ali, com a mão
ainda erguida para bater na porta quando eu a abri.
- Ruggero, precisava mesmo te encontrar! Exclamei satisfeita.
- E eu também. Ele riu parecendo satisfeito com minha euforia por vê- lo ali. Depois seus olhos percorreram meu corpo e um vermelho intenso se espalhou em seu rosto.
- Por que está vestida assim?
- Madalena tá lavando meu vestido. Ou uso estas roupas ou roupa nenhuma. Avisei. Por que eu não usei calças ontem? Calças não me deixariam pelada.
Ele ficou desconcertado.
- Mas, senhorita...
- Você já me viu com elas, não precisa ficar todo estranho por causa disso.
É só uma regata e uma saia.
Totalmente inofensivos, agora entre logo que eu quero falar com você. Ruggero pareceu relutante.
- Algum problema? Perguntei.
Sua cabeça se inclinou um pouquinho para frente enquanto ele me dizia:
- Não é adequado que eu entre em seu quarto, senhorita, ainda mais durante a noite e com você... vestida com estes trajes. Ah! Pelo amor de Deus!
- Deixa de ser tão antiquado, Ruggero. Alcancei seu braço para dentro.
- Vou deixar a porta aberta, está bem? Não vou te atacar. Brinquei.
Ele não riu. Mas acabou se deixando arrastar, só um pouco.

Meu lugarOnde histórias criam vida. Descubra agora