Prólogo - Parte 01

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Etiópia - 15 de Março de 1975

Muito veloz, um carro percorria uma estrada de chão batido no deserto da Etiópia, assustando uns poucos animais, que saíam em disparada. Alheios à pitoresca paisagem, os dois passageiros no banco de trás conversavam sobre a razão pela qual estavam ali.

- Tem certeza de que esse é o melhor lugar, Domenico?

- Claro que sim, Giuseppe! - disse o outro, determinado. - Segundo as nossas pesquisas, perdemos muito terreno aqui nos últimos anos.

Giuseppe não parecia convencido de que aquela fosse a melhor escolha; porém, se Domenico já tomara sua decisão, ninguém conseguiria demovê-lo. Resignado, indagou: - Você tem ideia de quem vamos escolher?

- Escolheremos qualquer um. Essa região é de extrema pobreza, e não será difícil acharmos um voluntário para nossa causa.

Mesmo abismado com a frieza do colega, Giuseppe tentou não demonstrar qualquer sinal de contrariedade, mas não pôde deixar de perguntar: - E ele sabe disso?

- Não! - Domenico mostrou-se incomodado. - Será feito à revelia dele, em nome de um bem maior!

- E se algo não sair como o esperado? Já pensou nos estragos que isso pode acarretar à nossa...

Domenico nem deixou a frase ser completada e redarguiu: - Chega, Giuseppe! Nós já discutimos isso inúmeras vezes, tudo foi pensado e repensado. Além disso, você quer o dinheiro ou não?

Dizendo isso, Domenico abriu a maleta que carregava no colo. Dentro dela, Giuseppe viu uma vultosa quantia em dinheiro e mais dois crachás. Surpreso, exclamou: - É muito mais do que eu esperava!

- Na verdade, a maior parte deste dinheiro será pago ao escolhido. Nós ficaremos com o que já foi combinado. Agora, segure esses crachás. Eles serão a nossa identidade nesse encontro - disse Domenico, entregando-os na mão de Giuseppe. - Domenico Tomazzini e Giuseppe Andreotti não existem aqui. Entendido?

Giuseppe apenas acenou com a cabeça em sinal de concordância. Três minutos mais tarde, o carro chegou a seu destino. O motorista rapidamente abriu a porta dos passageiros, e a imponente figura de Domenico, trajando um blazer negro como seus cabelos, emergiu. Notando a hesitação no rosto do colega, ele o instigou: - Desça logo. Não temos tempo a perder.

Giuseppe fitou os olhos verdes de Domenico sem conseguir entender como ele estava tão calmo diante do que eles estavam prestes a fazer ali. Sabendo, porém, que não havia como voltar atrás, ele finalmente desceu.

Já de pé ao lado de Domenico, ele ajeitou seu blazer azul claro e olhou-se no vidro do carro para arrumar os cabelos. As olheiras em volta de seus olhos azuis eram intensas e refletiam seu cansaço, assim como a barba por fazer. Porém, o que mais lhe chamou a atenção foi o crachá com o nome de Giacomo Lutero, que ora trazia ao peito. Um breve estranhamento o invadiu, logo abandonado pela sensação de que faltava pouco para os anos de trabalho enfim lhe trazerem o que mais ambicionava.

Domenico havia colocado a maleta sobre o capô do carro e agora olhava com atenção a vila à sua frente. Feitas de madeira e argila, as casas eram muito rústicas e sem conforto. Ao redor, umas poucas vacas e cabras pastavam, magras ao ponto de lhe serem vistos os ossos. Não era diferente o que acontecia com as pessoas. As crianças desnutridas traziam corpos distorcidos; já os adultos tinham uma aparência tão castigada pela fome e pelo sol que aparentavam terem bem mais idade do que realmente tinham.

Aquilo perturbou Giuseppe, que nunca havia visto tanta miséria de perto, só através dos noticiários. Ao vivo, tudo era mais impactante. Domenico, por sua vez, parecia não se importar com tamanha pobreza nem com o assombro das pessoas diante daquela visita extraordinária. Nada conseguia tirar-lhe a concentração do objetivo que os levara até ali: escolher alguém.

À medida que as pessoas se aproximavam mais do automóvel, o motorista preocupou-se e instintivamente levou a mão à cintura, encontrando a pistola cromada que carregava consigo. Vendo aquilo, Domenico segurou-lhe a mão, dizendo: - Fique calmo, Ângelo. Essas pessoas não nos oferecem perigo. Estão fracas e famintas. Apenas siga o que planejamos e comece a distribuir a comida.

Mesmo receoso, ele acatou as ordens de Domenico e dirigiu-se ao porta-malas, que estava abarrotado de alimentos, tudo de que aquela gente necessitava para ter sua atenção presa enquanto Domenico e Giuseppe tomavam sua decisão.

Mal Ângelo abriu o compartimento, as pessoas cercaram o carro. Seus olhares imploravam pela comida que Ângelo começou a distribuir, notando que cada um, ao pegar o alimento, sorria como se tivesse ganhado na loteria, apesar de aquele prêmio ser apenas um suspiro a mais de vida em meio à desgraça na qual viviam.

Tudo aquilo continuava mexendo com as emoções de Giuseppe sem sequer abalar Domenico, que permanecia impassível frente à miséria alheia. De repente, porém, alguém lhe chamou a atenção. Era um jovem franzino, que tinha a pele ressecada pelo sol e carregava nos braços um pouco de lenha. Mantendo-se longe, ele observava Ângelo distribuindo os alimentos e estava tão concentrado nisso que nem notou a aproximação de Domenico.

- Não vai pegar comida também? - questionou Domenico, na língua local.

O outro acenou negativamente com a cabeça.

- Posso saber por quê? - perguntou Domenico, notoriamente intrigado.

- Não conheço vocês, nem sei de onde vem essa comida - respondeu secamente.

Domenico olhou para os olhos sofridos à sua frente e admirou-se com a atitude do rapaz, cujos ossos da costela despontavam sob a pele magra, mas ainda assim se recusava a receber alimentos tão valiosos quanto ouro para aquele povo. Sentindo que terminara sua busca, Domenico sinalizou para Giuseppe, que logo se aproximou dos dois. Com o colega já ao seu lado, Domenico se dirigiu novamente ao garoto: - Meu nome é Alessandro Amaro, sou representante da Fundação África Sem Fome, e este é meu amigo Giacomo Lutero. Como você se chama e que idade tem, garoto?

- Sou Jamal Alomar e tenho 18 anos - respondeu, desconfiado. - O que vocês estão fazendo aqui?

- Viemos ajudá-los - respondeu Domenico, com voz branda. - E pelo pouco que vi, você pode cooperar conosco.

- Eu? Cooperar como?

- Coma alguma coisa, e logo conversaremos. - disse Domenico, lançando a Giuseppe um olhar que indicava já ter feito sua escolha.

Jamal permanecia confuso e desconfiado. Por outro lado, também estava faminto. Há dois dias não comia coisa alguma. Por isso, concordou em conversar com aqueles homens.

Sagrada Maldade - Caçada aos MultiplicadoresOnde histórias criam vida. Descubra agora