Capítulo 02 - Dor e Raiva - Parte 5

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 San Francisco – 08h03min

As ruas estavam praticamente vazias. O feriado prolongado de Ação de Graças mantivera as pessoas em casa ou viajando para visitarem familiares, e alguns que não tinham a sorte de estarem com suas famílias procuravam por comida em qualquer lugar que milagrosamente pudesse estar aberto no domingo. Era o caso de Evan, cuja mãe já falecera e o pai nunca mais dera notícias. Sem esposa nem filhos, ele não tinha nenhuma família para compartilhar o café, nem o almoço, nem refeição alguma. Evan já estava acostumado a uma vida solitária e sem vínculos afetivos. Ademais, quando eventualmente sentia necessidade de estar com alguém, de saciar suas vontades carnais, costumava recorrer a prostitutas.

Descendo pela California Street, ele chegou ao Huntington Park e dirigiu-se ao centro da praça, que lhe parecia ainda mais acolhedora após a extenuante caminhada. Ali, Evan avistou apenas uns pombos que ainda não migraram com a proximidade do inverno, e tampouco notaram sua presença, tão distraídos estavam em busca de suas tradicionais migalhas. Parando um pouco para contemplar a beleza do lugar, que compunha junto à Grace Cathedral um dos cartões postais de San Francisco, Evan avistou um enorme chafariz. Era uma verdadeira obra de arte, na qual se destacavam as figuras imponentes de quatro jovens esbeltos, esculpidos em bronze, segurando com as mãos elevadas uma enorme bacia de mármore rosa, ornada com tartarugas e rostos de querubins, de cujas bochechas rosadas jorravam filetes contínuos de água. Aproximando-se do chafariz, Evan observou os jovens que o levavam a pensar em anjos e se lembrou de que, desde que aceitara aquele trabalho, nunca mais pisara em uma igreja. Não por falta de tempo, mas sim por achar uma ironia entrar na casa de Deus fazendo o tipo de coisa que fazia. Porém, ao avistar a imensa igreja à sua frente, lembrou-se de que breve voltaria a pisar numa. E seria exatamente naquela diante dele.

Que será que o chefe de vocês acha do meu trabalho? – pensou ele, voltando a olhar para as estátuas na fonte. Embora soubesse que não obteria ali resposta alguma para essa pergunta, no íntimo Evan tinha consciência de qual ela seria, se aqueles "anjos" pudessem falar.

Como ele já estava cansado de procurar por comida, resolveu sentar um pouco, usando a borda do chafariz como assento. Porém, assim que se sentou, avistou do outro lado da rua o que tanto procurava. Era uma loja de conveniência. Alguns minutos depois, carregando duas sacolas, Evan já se encontrava a caminho de casa. Porém, as ruas íngremes de San Francisco, antes aliadas, uma vez que na vinda ele desfrutara de uma generosa descida, agora eram adversárias, exigindo um esforço a mais para vencer o que se tornara uma longa e terrível subida. E isso mudou o seu humor. – Maldita cidade! – praguejou. – Parece que vivo numa montanha-russa.

O ódio de Evan pela cidade não se devia apenas ao terreno irregular. Tinha a ver também com a verdadeira razão de ele estar ali: algo que lhe causava grande aversão, mas, caso tudo desse certo, desta vez lhe causaria enorme prazer. Era exatamente nisso que ele pensava, quando um grito o tirou de seus pensamentos. Ele olhou para os lados, porém não viu nada. No entanto, um segundo grito foi ouvido, e desta vez o som lhe indicou a direção. Vinha de um beco próximo de onde ele estava passando. Era a voz de um homem, angustiada, clamando por socorro. E mais uma vez o grito se repetiu: – Socorro! Alguém me ajude!

Cheio de desconfiança, porém vencido pela curiosidade, Evan encostou-se à parede e arriscou-se a espiar o que estava ocorrendo. Tudo que viu foi um homem alto com um boné na cabeça sumir no fim do beco. Um novo grito foi ouvido e Evan levou a mão à cintura para se certificar de que estava de posse de seu punhal. Por fim, ele entrou no beco devagar, tentando ser o mais silencioso possível. Logo depois, notou que os gritos cessaram, o que talvez significasse que o dono daquela voz já estaria morto. Contudo, como estava próximo ao fim do beco, Evan decidiu seguir adiante, portando o punhal em sua mão direita e pronto para um golpe, caso necessário.

Entretanto, ao final do beco, ele não encontrou ninguém. Tudo que viu foi um pequeno corredor entre o prédio e o muro. O corredor parecia rodear o prédio, e Evan suspeitou que isso facilitaria uma emboscada. Suas suspeitas logo se confirmaram, ao sentir braços fortes lhe agarrarem por trás. Antes mesmo de poder usar seu punhal, ele sentiu uma picada no pescoço, e imediatamente seus músculos se contraíram e logo depois relaxaram, fazendo com que o punhal e as sacolas caíssem de suas mãos ao mesmo tempo em que tudo à sua volta escurecia. Enquanto ele apagava, seu agressor comemorava: – Peguei você, seu desgraçado!



Sagrada Maldade - Caçada aos MultiplicadoresOnde histórias criam vida. Descubra agora